“How about a magic trick?”
Ainda lembro da primeira vez que eu assisti a Batman: O Cavaleiro das Trevas. Era um sábado e as extintas locadoras ainda existiam e faziam a promoção de alugar três filmes no sábado pelo preço de dois e só devolver na segunda sem qualquer multa. Lembro que vi Ratatouille e havia gostado bastante, assistido Sweeney Todd logo em seguida e gostado ainda mais, por consequência achava que estava em uma maré de sorte e que iria gostar ainda mais da minha terceira escolha naquele dia. O que eu não esperava era que eu estava prestes a ver aquela que é uma das maiores obras do Cinema e aquele que se tornaria o meu filme predileto de todos os tempos.
Sem perder tempo com apresentações, o longa nos joga no meio da ação e consegue nos imergir em sua atmosfera sombria com uma facilidade assombrosa. Atmosfera essa construída brilhantemente por Nolan que, ao apostar massivamente em efeitos práticos ao invés de CGI e ao escolher uma fotografia que opta por cores neutras e ressalta a escuridão de Gotham, confere um tom realista e urgente ao filme e que estabelece uma tensão que já começa em níveis extraordinários. Tensão que é intensificada com o passar de sua duração devido à trilha pujante e inesquecível de Hans Zimmer e James Newton Howard. Como se essa construção climática já não fosse o suficiente para tornar O Cavaleiro das Trevas uma obra notável, a construção dramática não fica nada atrás e nos apresenta um conteúdo complexo, desafiador e facilmente mais interessante do que os filmes do subgênero de super-herói costumam ser.
Mostrando como o surgimento do Batman afetou Gotham, o roteiro gradualmente apresenta uma sucessão de dilemas que retiram todo e qualquer personagem de sua zona de conforto e constantemente os colocam em um dos piores confrontos que existe: aquele em que cada um enfrenta a si mesmo. E tudo isso acontece porque aqui temos o agente do caos, que vira a cidade e seus habitantes de cabeça pra baixo e explicita a fragilidade dos ideais da sociedade que vemos. Dessa forma nenhum personagem que vemos ou conhecemos passa ileso por uma análise moral sob qualquer ângulo, ou melhor: nenhum deles precisa passar por esse julgamento já que todos são desenvolvidos de maneira tão humana que tentar observá-los como uma bússola que nos aponta para o que é certo ou errado é diminuir consideravelmente a riqueza de possibilidades que o roteiro oferece. Além disso, é incrível perceber como qualquer personagem que aparece em tela recebe um desenvolvimento completo que, independente do aprofundamento, demonstra como diferentes personalidades reagem ao caos que está acontecendo. Simplesmente não há nada aqui que apareça sem justificativa.
Tudo isso proporciona inúmeras possibilidades para o elenco brilhar em tela e fico contente em dizer que todos eles conseguiram aproveitá-las. Dentre eles destaco as ternas aparições de Caine como o que mais próximo restou de uma figura paterna para Bruce, a primeira vez que Freeman demonstra alguma vulnerabilidade em seu inflexível Lucius Fox, a excelente substituição que colocou Gyllenhaal no lugar de Holmes, o que tornou uma Rachel uma personagem muito mais carismática e a determinação intrínseca de Gordon que Oldman exprime com tanto talento. Mesmo assim, nenhum deles se destaca tanto quanto o trio Bale, Eckhart e Ledger.
Transformando Batman e Bruce em dois seres quase que completamente diferentes, Bale consegue não apenas transmitir qualquer transição emocional dos “dois” personagens com uma intensidade invejável como também impressiona ao mostrar que o encontro do vigilante com o multimilionário é algo quase impossível de se suportar. É como se a divisão de ambos não fosse apenas mais para protegê-lo de qualquer intervenção externa e sim para impedi-lo de se perder dentro de si mesmo. Já Eckhart, dono da trajetória mais interessante do filme, tem uma tarefa semelhante à de Bale, porém notavelmente mais complicado, pois ao retratar Harvey Dent e o “Duas-Caras” (que nunca é chamado dessa forma na obra, vale lembrar) o ator precisa convencer tanto como o Cavaleiro Branco de Gotham como quanto o vilão condicional de todo o quão instaurado pelo Coringa. Essa transformação de alguém com princípios calcados em justiça social para alguém que quer obsessiva e imediatamente uma vingança pessoal é carregada de melancolia, ódio e uma enorme carga de decepção, três sentimentos que Eckhart transmitia com uma enorme visceralidade.
Mas é claro que ninguém consegue atingir o patamar que Ledger chegou com o seu Coringa. Sem passado, sem história e sem motivação aparente, o agente do caos era apenas alguém que quer ver o mundo pegar fogo. Sua maquiagem não esconde uma pessoa por trás, ela mostra quem ele é de verdade: um palhaço macabro que se diverte com a destruição de tudo a seu redor. Aproveitando esse terreno, Ledger compõe milimetricamente o seu personagem e dá origem a um dos maiores vilões da história do Cinema. Constantemente com a cabeça baixa e o olhar pra cima, com a língua percorrendo as cicatrizes de sua boca, com uma expressão corporal que mistura desleixo e despreocupação, Ledger constrói o seu Coringa como alguém a ser igualmente temido e admirado, como alguém que causa repulsa pelas suas ações, mas que ao mesmo tempo impressiona pela capacidade de criar várias explosões com a menor fagulha. Uma atuação icônica que transcende até o próprio filme de tão sensacional que é.
O resultado da junção de tudo o que foi dito, com o acréscimo de vários outros aspectos (em especial o uso de montagens paralelas), é um filme que parece ser uma grande soma de clímax, onde um é mais intenso e tenso que o outro, onde o espectador não tem espaço para respirar diante da agilidade de seu ritmo, onde quem assiste é levado a enfrentar os mesmos dilemas pelos quais os personagens passam, onde o público é premiado com uma das melhores (e a meu ver, A melhor) experiência que o Cinema já proporcionou. A expressão “Obra-Prima” existe apenas para ser definida completamente por Batman: O Cavaleiro das Trevas.
“He's the hero Gotham deserves, but not the one it needs right now. So we'll hunt him. Because he can take it. Because he's not our hero. He's a silent guardian. A watchful protector. A Dark Knight.”
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