Uma Odisseia no Tempo
Em Interstellar, Christopher Nolan - um dos poucos cineastas americanos deste início de século classificáveis como reais autores – atingiu, literal e figuradamente, o zênite no que tange à ambição cinematográfica: não
apenas pioneirizou a retratação imagética fidedigna de conceitos na fronteira do conhecimento científico da humanidade sobre o Universo, como levou até
as últimas consequências seu mais recorrente tema (a resposta da mente humana ante a inevitabilidade da ilusão na percepção da vida, dentro do limitante contexto do curso inexorável do tempo que a rege).
Ainda assim, uma fração significativa do público e da crítica parece ter ficado alheia a tais feitos. Na verdade, pouco mais de um ano após a estréia, o
que se pode dizer é que o filme logrou ao menos o reconhecimento de parte de seus esmerados aspectos técnicos, evidenciado pelas premiações de inúmeras
entidades (inclusive o Oscar) para a equipe de efeitos visuais, liderada pelo experiente Paul Franklin e fundamentalmente auxiliada pelo embasamento
científico para representações cósmicas fornecido por Kip Thorne, eminente físico teórico que também foi coautor do argumento.
Comparativamente os méritos temáticos foram ignorados (mesmo por parte dos defensores do filme, que se satisfez tão somente com arrojo visual e
eficiência narrativa). Dentre os motivos para tanto, destacam-se: o elevado hype previamente ao lançamento (crescente a cada novo filme de Nolan e ao
qual invariavelmente segue-se o fenômeno dos haters), o alegado excesso de didatismo e exposição (mesmo considerando ser um filme com grande
amplitude de público-alvo que emprega conceitos científicos de ponta como recursos narrativos essenciais), um suposto abuso de melancolia e exacerbação emocional (apesar da natureza intrinsecamente trágica do dilema
existencial que aflige a maioria dos personagens) e um desfecho aparentemente implausível, por demais conveniente...Enfim, fatores variados
que produzem o efeito comum de impedir a imersão na trama e em suas temáticas subjacentes.
E, entretanto, elas existem, independentemente da falha dos espectadores em percebê-las. Em suma, podem ser divididas em dois polos principais: “a ilusão” e “o tempo”. Ambos quase onipresentes ao longo da
filmografia de Nolan. Seja conjuntamente, em Memento (a memória prejudicada originando tanto a ocultação da verdade quanto a incapacidade da percepção de passagem do tempo para o protagonista). Ou como na trilogia
The Dark Knight (em que alternam-se prejuízos e benefícios de mentiras para o protagonista e para a sociedade culminando em confrontos arbitrados pelo
tempo, representado pelas bombas-relógio nos clímax dos três capítulos). E, sobretudo, em Inception (onde o estado onírico recorrente relativiza a passagem do tempo para o protagonista e compromete seu julgamento de
realidade).
Voltando a Interstellar, o tempo deixa sua marca tanto de maneira mais evidente pela utilização da dilatação temporal relativística (nas proximidades de buracos-negros como Gargantua) enquanto dispositivo narrativo que faz o protagonista, Cooper, perder o crescimento dos filhos e até mesmo viver além da morte deles, quanto sutilmente (mas de modo memorável) pela trilha sonora barroca de Hans Zimmer, que incorpora, em momentos-chave, acordes idênticos a sons de ponteiros de relógio. Ademais, diversos elementos simbólicos constituintes da própria trama do filme mantém constante tal alusão ao tempo, o
que pode ser percebido em detalhes que vão desde a localização do buraco-de-minhoca em nosso sistema solar próximo a Saturno (planeta nomeado em homenagem ao deus greco-romano do Tempo) ao design de produção de
Nathan Crowley, que confere à nave Endurance um formato similar a um relógio.
Já a ilusão manifesta-se sobretudo como viés de percepção da realidade, tanto para o protagonista quanto para o público. Assim, a verdade não apenas escapa a Cooper ao ser enganado pelas mentiras do Dr. Brand e do Dr. Mann, mas também ao espectador, já que Nolan (em seu mais inspirado trabalho de direção até aqui) constantemente lhe nega informações: seja através de sua já característica profundidade de campo reduzida (aqui levado
ao extremo em algumas cenas, tal como o plano que encerra a projeção); pelo uso recorrente de restrição a um só ponto de vista no posicionamento da câmera (todas as cenas de vôo das naves auxiliares Ranger e Lander
empregam câmera subjetiva fixa na popa e mesmo nas cenas na Endurance a câmera é frequentemente colocada dentro da nave, simulando a visão dos astronautas em detrimento de planos longos típicos em filmes do gênero); por meio de uma mixagem de som (chefiada pelo veterano Gregg Landaker) surpreendentemente audaciosa - também atraindo críticas quando da estréia – que em vários momentos relega o volume dos diálogos ao mínimo, priorizando a catarse pela trilha de Zimmer; ou mesmo por outro aspecto autoral de Nolan, a montagem paralela (como de hábito orquestrada por Lee Smith), aqui empregada até o limite de suas possibilidades, reduzindo cenas individuais a fragmentos quase ininteligíveis sozinhos, mas que ganham sentido combinados simetricamente a outros, permitindo a interpolação entre
linhas temporais distintas, relativizando a distância espaço-temporal entre ações que rimam entre si e evidenciando características comuns à espécie humana, verificado sobretudo ao final do segundo ato, em que o conflito entre Cooper e Dr. Mann é equiparado àquele entre Murph e Tom.
Analisemos, então, tais conflitos pareados. Pode-se perceber de modo claro que refletem conjuntamente o tema específico abordado por Nolan neste filme (ainda que guardando estreita relação com as duas temáticas autorais supracitadas): o embate intrínseco ao ser humano entre as perspectivas pragmática e exploradora, que pode ser reduzido, ainda mais primordialmente, à dicotomia entre instinto de sobrevivência e curiosidade racional. Como diz o personagem Donald, referindo-se ao início do século XXI: “Quando eu era criança, parecia que faziam algo novo todo dia. Novas tecnologias, idéias. (...) Mas 6 bilhões de pessoas...tente imaginar! E cada uma delas tentando ter tudo”. Tendo em mente tal cenário, não é difícil de imaginar como no prazo de algumas décadas a extremização de tal conflito tenha levado a humanidade à beira da extinção, e marcos tecnológicos como a NASA tenham sido cooptados para propósitos mesquinhos como bombardeiros da estratosfera e tido sua história adulterada (a menção aos livros didáticos do futuro “ensinando” sobre a “farsa das missões lunares objetivando vencer a Guerra Fria”).
Nesse sentido, desde o início da narrativa, Cooper é construído como uma pessoa frustrada por ter um espírito aventureiro nato que acaba sendo privado de satisfação pelas necessidades imediatas de subsistência implicadas pelo ambiente inóspito da Terra do futuro. De prodígio engenheiro piloto aeroespacial ele passa a fazendeiro entediado. Mas também se torna pai de Murph e Tom, este com os olhos resignados para a terra abaixo de si, aquela com o olhar esperançoso sempre voltado para o céu, personificando a polarização entre instinto e razão. Obviamente, Cooper manifesta uma ligação maior com Murph, e a primeira grande ironia narrativa dá-se quando, justamente pela identificação partilhada por ambos enquanto exploradores, ele se vê compelido a aceitar a missão interestelar, mesmo com o risco de separar-se dela para sempre.
E é este o centro emocional inequívoco do filme: o dilema de Cooper entre garantir a continuidade da espécie humana em um novo lar no espaço (alternativa racional) e se reunir novamente a Murph, cumprindo a promessa de amor que lhe fez (alternativa instintiva). Ao longo do filme ele se exaure para equilibrar ambas apesar dos diversos reveses enfrentados (sobretudo as já referidas limitações pelo tempo e pela ilusões da realidade), até que, após o combate com o Dr. Mann – um personagem que mereceria um capítulo à parte de análise, mas que, sinteticamente, pode ser interpretado como uma figura de anjo caído, com seu próprio paraíso congelado nos céus do planeta que colonizou, ou mesmo como um símbolo eminente do paradoxo da natureza do homem, inicialmente tido como herói representativo máximo do poder do intelecto humano, abdicando da própria vida para expandir o legado da espécie, apenas para, ao final do segundo ato, revelar ter caído na tentação do instinto egoísta de autopreservação e lutar contra o ainda idealista Cooper -, finalmente ele se vê encurralado, a Endurance danificada e incapaz de retornar para a Terra, mas talvez com chance de atingir o planeta de Edmunds. Ele então resolve sacrificar-se, numa maneira análoga à de protagonistas anteriores da filmografia de Nolan: o chamado “leap of faith” ("salto de fé").
Assim, tal como Dom Cobb ao se suicidar durante o que entendia como sonho para possivelmente retornar à realidade ou Bruce Wayne ao saltar uma distância sobrehumana para talvez escapar da prisão subterrânea e concluir sua jornada mítica enquanto herói, Cooper se atira com uma das Rangers remanescentes à escuridão infinita e além do limite da realidade (ou mesmo de compreensão da ciência) do buraco-negro Gargantua, confiando a Amelia Brand a responsabilidade de concluir a missão e se ligando à ínfima esperança de que algo sobrenatural pudesse ocorrer além do horizonte de eventos (manipulação do tempo ou comunicação interdimensional) para possibilitar seu reencontro aparentemente impossível com Murph. E para grande surpresa sua e do próprio espectador, é exatamente isto o que ocorre. E não foram poucos os que protestaram quanto a aparente conveniência extrema de tal desfecho, permitindo a resolução dos problemas de Cooper à moda Deus Ex Machina, viabilizando tanto a sua reunião catártica com Murph quanto a sobrevivência e progresso tecnológico exponencial da humanidade. No entanto estes mesmos críticos se esqueceram (ou nunca estiveram cientes) da supracitada afinidade temática de Nolan pela ilusão (que ele já explicitara nos desfechos de suas duas últimas obras, conferindo ambiguidade ao destino tanto de Dom Cobb quanto de Bruce Wayne).
E é aqui que, inspirado pelos heróis de Nolan, também permito-me meu próprio "salto de fé" em minha interpretação sobre este controverso desfecho. Acredito que os eventos retratados são também – no mínimo – ambíguos, de modo que questiono se de fato teriam ocorrido. A própria fotografia durante as cenas finais de Cooper na idílica estação espacial é completamente distinta do restante do filme, investindo numa paleta de cores quentes e enfim permitindo ao virtuoso Hoyte Van Hoytema empregar sua já característica saturação luminosa dos quadros, conferindo-lhes textura etérea. Levando-se também em consideração a afirmação do Dr. Mann para Cooper sobre o momento da morte (de que supostamente a última imagem que surgiria na mente de uma pessoa seria a de seus filhos, obrigando-a a esforços adicionais para garantir a sobrevivência deles) e a extrema improbabilidade de que um buraco-negro pudesse ter sido moldado por seres pentadimensionais descendentes da humanidade, a conclusão inevitável é que há, no mínimo, uma alternativa racional para explicar o desfecho em detrimento da catarse emocional: Cooper morreu logo após ejetar-se da Ranger em Gargantua e tudo o que se segue constitui seu devaneio de morte.
Objetivamente, tal alternativa poderia trazer problemas narrativos. Ora, se Cooper nunca esteve no tesseract enviando mensagens gravitacionais para si mesmo e para Murph no passado, como se justificariam os aparentes fenômenos gravitacionais do primeiro ato, desde o “fantasma” de Murph até as coordenadas binárias na poeira para a instalação secreta da NASA? Se não existiam os tais seres da quinta dimensão, como se justificariam as anomalias macrogravitacionais como o buraco-de-minhoca? Algumas podem ser razoavelmente respondidas com um pouco de esforço imaginativo para gerar hipóteses (Cooper poderia já saber as coordenadas desde sua época de piloto e reprimiu, reprimiu a memória após o acidente e a morte da esposa e esta despertou com o estímulo de Murph, interpretando padrões aleatórios como propositais; seres espaciais não-humanos podem ter criado as anomalias espaciais como exortação à humanidade), outras permanecem obscuras (provavelmente por interpretação ordenada de acasos inacreditáveis), porém é bastante irônico que um filme e seu diretor que sejam com tanta frequência rotulados de demasiadamente didáticos e explicativos possam oferecer tantos aspectos misteriosos a uma análise mais profunda. De todo modo, o que importa é que seja realidade ou ilusão o que acontece com Cooper nesses momentos derradeiros, ele acredita que seja verdade a catarse.
Se Cooper de fato não tiver sobrevivido a sua jornada rumo ao desconhecido em Gargantua, é provável que isso signifique que todos os habitantes da Terra tenham perecido (os únicos remanescentes da humanidade potencialmente sendo os descendentes da colônia estabelecida por Amelia no planeta de Edmunds) ou mesmo que Murph e Tom talvez jamais tenham se reconciliado. Mas essa verdade estará para sempre inacessível para nós espectadores, só nos restando especular. Entretanto, para Cooper não há dúvida: seria absolutamente imperdoável para ele descumprir sua promessa para a filha mesmo que salvasse a humanidade no processo. E, evidentemente, a recíproca não seria viável pelo paradoxo que configuraria. Ele abraça, então, a teoria duvidosa desesperada de Amelia sobre o amor como única entidade interdimensionalmente transcendente e logo uma circunstância milagrosa se efetiva e ele está certo de ter cumprido seu papel tanto como pai quanto como vanguardista da humanidade. É esta, pois, a sua resposta ao dilema metafísico humano: perseguindo ao longo da vida os anseios do instinto e da razão ele é forçado a escolher, ante as limitações extremas do Universo (de tempo e percepção da realidade), e não se importa de refugiar-se numa ilusão para atender a ambos.
Enfim, o herói venceu todos os inimigos em sua jornada (inclusive o maior de todos, o inexorável tempo) e contra todas a improbabilidades retornou ao lar. Diferentemente da Odisseia de Homero, porém, nesta Odisseia no Tempo é o desfecho que traz os eventos mais provavelmente fantasiosos. E mesmo após o regresso reconfortante, o herói sente-se compelido a retomar a aventura exploradora. Cooper sente-se deslocado temporalmente ante os descendentes de Murph em seu leito de morte, tal qual um espectro de eras passadas (o "fantasma" que ele próprio argumentara que todos pais estariam destinados a se tornar para seus filhos) que jamais deveria testemunhar o definhamento de sua própria cria e, mesmo que numa dimensão onírica, sente a necessidade de lançar-se uma vez mais através da imensidão do Cosmo em busca de Amelia (sua contemporânea) na nova colônia, a qual ele finalmente percebe que não deveria ter abandonado. Pois seu medo de falhar em sua promessa a Murph era infundado, todo o cuidado de que ela precisaria em vida ele já lhe dispensara, por meio de sua instrução e estímulo ao seu intelecto (simbolizados pela instante repleta de livros no quarto de Murph), seu mais importante e verdadeiro legado, a partir do qual ela se tornou uma brilhante cientista, e agora seria o momento de ele seguir em frente e deixar ela viver a própria vida, sendo responsabilidade dela e de sua geração salvar a Terra da catástrofe (se isso fosse possível), e não dele.
Configura-se, deste modo, a metáfora mais bela, recorrente e derradeira de Interstellar: a saída do ninho. Como o espirituoso robô TARS adapta criativamente a terceira lei de Newton: “O único meio que os seres humanos encontraram para chegar em algum lugar é deixando algo para trás”. No caso de Cooper (e de pais em geral) isso significa que o único meio de seguir em frente com a própria vida e, as suas aspirações racionais intrínsecas, seria eventualmente cessar o cuidado aos filhos, estes finalmente cuidando de si, assumindo a própria vida, deixando o ninho. Tal como os descendentes pentadimensionais da humanidade (imaginados por Cooper), cuidando desta até que venha a tornar-se autônoma. Tal como o planeta Terra, abrigando os seres humanos até que estes o deixem rumo a seu destino no Universo além, entre as estrelas (que afinal primeiro forjam toda a Matéria) ou morram aqui, resignados a olhar para baixo pela própria mesquinhez. Tal como Nolan, oferecendo uma ficção-científica complexa com uma quantia de informações restrita mas suficiente para inspirar os espectadores atentos a elaborarem interpretações próprias que possibilitem compreender um pouco melhor o significado, dentre limitações e possibilidades, da vida humana.
Grande crítica! 😉