Pessoas imperfeitas em situações extremas. Marion Crane (Janet Leigh) sempre fora uma jovem responsável, mas que começa a ser atordoada pelo fantasma do casamento, enquanto seu namorado Sam Loomis (John Gavin) está enterrado em dívidas, o que impossibilita o matrimônio. Norman Bates (Anthony Perkins) é um jovem dono de um pequeno motel de estrada que cresceu reprimido pela sua mãe controladora que o mantém preso à sua infância. Psicose mostra como qualquer pessoa, nas circunstâncias certas, pode ser levado à ações irracionais.
Apesar de toda sua técnica e das muitas polêmicas nas quais se envolveu – “ator é gado” – Hitchcock sempre foi um diretor com facilidade em criar seres humanos reais, com todas suas fragilidades e defeitos. Nunca precisando incorrer em explicações, flashbacks, ou qualquer recurso de “fácil entendimento", Hitchcock era um verdadeiro mestre ao utilizar a imagem para desenvolver seus personagens. Vide, por exemplo, o plano inicial de Janela Indiscreta (1954), no qual a câmera nos mostra cuidadosamente o apartamento do protagonista, revelando-nos informações valiosas sobre o mesmo. Em Psicose ele faz algo semelhante quando, já no final do filme, nos mostra o quarto de Norman Bates, um quarto de criança, intocado desde que o mesmo era um menino, mesmo que ele ainda durma nele. Os personagens de Hitchcock são seres humanos críveis e falhos, não romantizados (pelo contrário, a maioria apresenta sérios problemas psicológicos ou emocionais), pessoas que compreendemos nas suas formas de agir pela honestidade com a qual são representadas, mesmo que sejam personagens desonestos.
Psicose é um filme dinâmico, ritmado, no qual não há tempo para explicações, ainda assim, é muito fácil entender o drama pessoal vivido por Marion e se identificar com sua reação ao receber 40 mil dólares em dinheiro para que depositasse numa conta para seu chefe. Hitchcock nos apresenta os fatos como um voyeur – num proposta menos radical do que a do genial Janela Indiscreta – revelando-se já na primeira cena, quando a câmera invade sorrateiramente, pela janela, a privacidade do casal. A partir daí, acompanhamos com curiosidade os dramas de Marion e nos envolvemos nas suas decisões, sendo impossível evitar o nervosismo quando a mesma, após decidir fugir com os 40 mil, é interrogada pelo policial na estrada, ou quando ela se atrapalha e age de forma suspeita ao trocar seu carro. Como eu disse, Marion é uma personagem imperfeita, como uma pessoa real, ela comete erros e age de forma descuidada, afinal, ela nunca esteve acostumada a “fazer a coisa errada”.
O filme é tão cheio de momentos geniais que alguns chegam a receber pouco destaque. Essas cenas na estrada são soberbas, um show de suspense. Hitchcock alcançou, ao longo de sua imensa carreira, um grau de maestria tão elevado que era possível fazer o mais enervante dos suspenses apenas com diálogos, recurso que ele utiliza constantemente ao longo deste filme. As conversas entre Marion e o policial, e entre a mesma e o vendedor de carros são ambas muito tensas e geram um suspense de altíssimo nível. Fora a maravilhosa cena na qual a jovem dirige em meio ao temporal e imagina os diálogos de seu chefe com o cliente que foi roubado quando eles percebessem a ausência do dinheiro, nesse momento é valorizada a grande atuação de Janet Leigh, minimalista em sua composição da personagem.
A jornada da protagonista a leva ao remoto, e inevitavelmente sinistro, Bates Motel, onde ela se hospeda por uma noite para fugir da chuva. Ela tem uma longa conversa com Norman Bates, na qual ambos se identificam pelas “armadilhas pessoais” nas quais se prenderam – o diálogo mais brilhante do filme, no qual muito é dito nas entrelinhas e, novamente, repleto de suspense. É nesse momento que Hitchcock faz a sua jogada de mestre, provavelmente a mais ousada de sua carreira: Marion é brutalmente assassinada – na icônica cena do chuveiro – e há uma troca de protagonista, passados 40 minutos de filme, sendo Norman Bates o personagem principal a partir de então. A genialidade dessa troca é tamanha que é difícil descrever em palavras, simplesmente o filme muda todo seu panorama estando próximo já de sua metade, sendo mais incrível o fato de que a ruptura é rapidamente aceita e digerida pelo público, não causando nenhum estranhamento que prejudicasse o resto da obra.
A marca dos grandes filmes é que sempre é possível extrair mais deles a cada revisão. Já vi Psicose mais de 5 vezes, tranquilamente; nessa minha última, e melhor, revisão (no cinema, obrigado Cinemark) percebi, entretanto, um novo detalhe. Quando Marion sugere a Norman que coloque sua mãe num asilo, a nitidamente irritada resposta do mesmo sugere, sutilmente, que ele já esteve num. Fiquei pensando, será que, após a morte de sua mãe e seu amante, Norman, ainda jovem demais para cuidar do motel sozinho, não ficou em algum hospício ou algo do gênero? Acho bem possível.
Ainda que não haja nada mais para ser dito da famosa cena do chuveiro, não creio que posso escrever sobre Psicose e ignorá-la. A poderosa combinação da estridente trilha sonora – numa sacada genial de Bernard Hermann de fazê-la apenas com instrumentos de corda – com a frenética montagem, que acompanha as guinchadas da trilha assim como os golpes da faca, alternando entre rápidos closes que jamais mostram o corte em si, ou a nudez, cria uma das cenas mais impactantes e sugestivas da história. A violência é extrema para os padrões da época e a cena em si é chocante até hoje – não há nada tão gratificante quanto assistir à Psicose pela primeira vez sem saber nenhum de seus segredos. A cena culmina num belíssimo e poderoso zoom-out (zoom inverso) do olho já sem vida de Marion, atirada no chão. Vale a pena mencionar a curiosidade de que a atriz teve que manter aquele olhar vidrado durante a cena, pois não foi possível fazê-la com lentes.
Hitchcock foi um diretor que sempre soube o momento certo de fazer exibicionismos (planos-sequência e malabarismos de câmera) e o de filmar de forma mais “convencional”, ainda que ele nunca adotasse os planos totalmente convencionais, e sim sua versão particular dos mesmos. Sua direção espetacular proporcionou ainda outras cenas tão brilhantes quanto à do chuveiro, como a cena do assassinato de Arbogast (na minha opinião, a cena mais assustadora do filme, permanecendo intacta com o passar dos anos). A construção do suspense nesse momento é genial: com takes nada apressados, tomando seu tempo, Hitchcock nos mostra Arbogast entrando sorrateiramente na casa; ele começa a subir as escadas, lentamente para não fazer barulho; vemos um plano discreto da porta se abrindo (visto do chão); surge a trilha sonora estridente quando vemos, do ponto de vista do teto, a mãe saindo do quarto e esfaqueando Arbogast. Uma cena primorosa, criando um padrão muito imitado – ainda que nunca com o mesmo impacto – de suspense.
Muito se discute se Psicose é um terror ou um suspense, ou se ele ainda é assustador. Para mim o elemento principal da obra, plenamente eficiente até hoje, é a constante atmosfera sombria que Hitchcock impõe sobre a narrativa. Psicose consegue ser sufocante mesmo em momentos simples, como no excelente diálogo entre Arbogast (Martin Balsam, num ótimo trabalho) e Norman Bates, na primeira (e única) vez que se encontram. O medo, aqui, não é esporádico nem se dá pelo susto (ainda que haja pelo menos três momentos de susto inevitável ao longo do filme), ele é constante, como quando Norman Bates despeja o carro de Marion no pântano e ele para de afundar por alguns segundos, ou até mesmo na última cena, na qual apenas vemos Norman sentado pacificamente num banco, esperando, enquanto ouvimos o monólogo final da “mãe”. Uma cena altamente perturbadora, muito marcante.
Há tanto para ser dito sobre Psicose, mas, infelizmente, meu texto já se alonga demais. Poderia destrinchar ainda as inúmeras curiosidades sobre a produção do mesmo, realizada com pouquíssimo orçamento em filmado em um mês (recomendo aqui a leitura do livro Hitchcock e os Bastidores de Psicose, em detrimento do fraco filme Hitchcock, 2012, protagonizado por Anthony Hopkins); poderia exaltar todo pioneirismo do filme e o quanto ele é influente nos gêneros de terror e suspense até hoje; poderia falar sobre a explicação final do psiquiatra, hoje tida como redundante, mas necessária na época quando ninguém sabia nada sobre múltipla personalidade... Enfim, Psicose poderia gerar um texto interminável; acabo o meu, portanto, tecendo um breve comentário acerca da sobrenatural atuação de Anthony Perkins – ator que nunca mais coube bem em qualquer outro papel – que construiu um dos antagonistas mais icônicos do cinema, numa personificação detalhada e contundente desse perturbado assassino. Sua performance é tão honesta e envolvente que nos sentimos mal por Norman, até torcemos por ele em certos momentos.
Texto originalmente publicado no meu blog:
http://criticpop.blogspot.pt/2015/02/critica-psicose-psycho-1960.html
Um dos melhores textos que já li sobre esta obra-prima do cinema.
Valeu, Luiz!
Texto excelente, que faz jus à grandiosidade de "Psycho"(particularmente, meu filme predileto). E finalmente alguém que também concorde que a cena do assassinato de Arbogast é a mais assustadora do filme.
Também achei a cena do assassinato do detetive a mais assustadora. A forma rápida que o Norman sai do quarto junto a trilha sonora gera um medo alto. E o diálogo dele com a Marion é muito bom. Começa com um tom mais leve e no final já se instala um clima macabro.