Sobre violência sobre violência: o embate entre gerações
Esta crítica contém spoilers, apesar do fato de eu defender ferrenhamente a composição de textos limpos, que não venham a estragar uma ou outra surpresa do filme em questão. O meu objetivo aqui, porém, é outro: proporcionar, aos que viram ambos os filmes de “Sob o Domínio do Medo”, a oportunidade de repensar sobre certos aspectos das obras. Caso contrário, não passe daqui.
É seguindo a velha máxima “em time que está ganhando, não se mexe” que essa refilmagem de Sob o Domínio do Medo (Straw Dogs, 2011) é realizada, muito embora seja traduzida para os tempos atuais, o que acaba fazendo com que escape, um pouco, às comparações diretas com o clássico do mestre da violência Sam Peckinpah, mesmo que elas sejam inevitáveis. A necessidade de uma refilmagem dessas, que carrega todo o peso do tempo e de tamanha influência, ser realizada é e sempre será discutida, mas, felizmente, o filme de 2011 se sai inesperadamente bem e possui méritos suficientes para que mereça ser assistido, independentemente de conceitos pré-estabelecidos.
Um desses méritos e, sem surpresa, aquele que surge primeiro em cena se refere à parte técnica, possibilitada pelo natural avanço da qualidade do cinema nessa área. A sequência inicial possui belíssima fotografia, é relativamente contida (jogada sempre esperta e interessante), conta com bons planos e movimentos de câmera singelos (tudo realizado com precisão extrema), mas acima de tudo trata de colocar os “pingos nos is” e servir de porta de entrada para um cinema visivelmente bem mais comercial que o de Peckinpah, mas que consegue ser fiel à década em que está sendo realizado. Esse reflexo dos tempos atuais sugere que tudo seja realizado de maneira mais direta (e mastigada), e é exatamente o que acontece aqui; por isso e por n outros motivos que serão desenvolvidos, aquela mágica e estranha introdução ao universo do filme de 1971 dificilmente poderia ter sido reproduzida aqui. O Sob o Domínio do Medo atual fica então no meio do caminho: é difícil que faça frente ao original em qualquer aspecto que seja, mas é respeitoso demais para procurar uma abordagem totalmente nova, o que não é nenhum demérito, apenas torna a experiência menos interessante do que poderia ter sido, se o original já tiver sido visto. Existe algo no meio de tudo isso, entretanto, que não poderia faltar para que Sob o Domínio do Medo conseguisse ser bem sucedido na reprodução da ótica de seus fatos.
Uma das grandes qualidades do filme de Peckinpah, e da grande maioria de suas obras, é a ambientação. O filme de 71 começa. Então se desenvolve como quem não quer nada. Transmite a sua perspectiva de forma nada menos do que muito inteligente. E explode de uma forma sufocante e inesquecível, contrário até mesmo às expectativas dos fãs mais fervorosos de Peckinpah. Sob a citada forma “direta”, o filme de 2011 é explícito ao mostrar do que todo aquele universo se trata; a surpresa do desenvolvimento contínuo é, portanto, perdida aqui, e este novo Sob o Domínio do Medo é uma bomba prestar a explodir desde a comentada primeira cena. Colocando essas observações sob a mesma analogia, mas com um exemplo diferente: o filme de Peckinpah é uma bomba atômica, enquanto o de Rod Lurie seria capaz de virar os “pratos” do Palácio do Planalto. Obviamente, a decisão de trazer a trama para os anos 2000 influência na ambientação. Não entrarei no mérito da necessidade dessa mudança de época, visto que seria totalmente possível que o filme ainda se passasse nos anos 70 e conseguisse atualizar a mensagem para as novas audiências. Da mesma forma que a concorrência com o filme original seria muito maior se houvessem optado por essa escolha. Como foi feito, o filme de 2011 une o “útil ao agradável”, afinal, além de escapar aos críticos, tenta levar a filosofia que defende, para novos espectadores, a partir de uma época que indiscutivelmente lhes é mais familiar, e, portanto, de fácil aceitação. Lembram-se daquela discutida necessidade de se refilmar uma obra desse calibre? Talvez seja apenas a velha oportunidade de se aproveitar de algo que tem fama e ganhar em cima disso, expandindo os horizontes e buscando novo público. O resultado do produto final fatalmente seria a soma de todas as escolhas definidas como mais benéficas para que se chegasse ao grande objetivo. Seria a velha máquina comercial Hollywoodiana de se gerar riquezas... Mas aqui estou eu, divagando, quando prometi a mim mesmo que não entraria nesse mérito. Sob o Domínio do Medo de 2011 é um filme bom por si só e ponto de exclamação!
Pois bem, voltemos à questão meramente ambiental. Enquanto no filme de Peckinpah “comprávamos” rapidamente aquela comunidade inglesa, rústica e estranhamente encantadora e charmosa, a transposição interiorana americana (viciada em football) sofre, não com a falta de identidade, já que tudo, desde os cenários, às vestimentas e, por assim dizer, cultura daquela região parece totalmente adaptável a qualquer realidade que quisesse ser passada, mas por um senso de estranheza. É um pouco difícil de adaptar o pensamento à ideia de que possa realmente ser possível a existência de locais que ainda estejam tão restritos à própria existência (como, e não é coincidência, o protagonista bem frisa: “o mundo está em guerra e a notícia principal do jornal é o primeiro jogo de futebol da temporada!”), principalmente, em um planeta tão cheio de comunicação – algo distante da década de 70. Passado esse sentimento, entretanto, não é preciso ir longe para acreditar que aquilo é totalmente plausível, basta que se veja a quantidade de comunidades e seitas existentes, altamente influenciáveis por diversos meios, sejam eles os mais estapafúrdios. Por que não haveria a violência de ser algo próximo a uma epidemia psicológica, algo sociocultural? Se tantas comunidades são absorvidas pela mentalidade de líderes perversos, por que razão não seria possível que vivessem sob a existência de uma brutalidade inconsciente?
A ambientação, porém, não deve ser tratada de forma independente. É preciso que esteja relacionada às peças vivas em cena. É o conjunto de personagens que fazem com que qualquer questão no universo definido seja desenvolvida, seja de maneira subliminar ou expositiva. Falando-se com simplicidade, sem rodeios, é praticamente uma covardia, entretanto, querer comparar o personagem principal do filme de Peckinpah com esse daqui. Dustin Hoffman é um dos maiores atores de todos os tempos e faz um papel praticamente perfeito no filme de 1971, mostrando fragilidade, insegurança e uma transformação de caráter e personalidade de emocionar qualquer pessoa. James Marsden está mal? Longe disso, mas é impossível querer colocá-los em um mesmo nível de interpretação. O que ajuda bastante as atuações, em um contexto geral, acaba sendo a inteligente proposta de não definir mocinhos e vilões naquela história, ainda que seja difícil não se torcer pelo roteirista David. O que acaba, finalmente, por indicar outro ainda bom artifício utilizado: a personalidade de David. É importante perceber que David está longe de ser o “cara perfeito”, e não evita cometer deslizes que muitos considerariam como arrogância, ou machismo, nos confrontos subsequentes que trava com os habitantes locais, em um choque cultural, do homem que veio da cidade grande e daquela população considerada por ele como uma comunidade de “caipiras”, ou nas discussões internas ao relacionamento, com Amy, ao acusá-la de se expor demais aos habitantes locais e que se ela “usasse um sutiã, teria mais respeito”. Assim como David, Amy (interpretada pela bela Kate Bosworth), não escapa de possuir algumas lacunas psicológicas, que seriam consideradas como atitudes não reprováveis. Kate interpreta a queridinha local, que retorna à “Backwater”, como satiriza em determinado momento, depois de conseguir escapar das lembranças que o lugar lhe trazia e de ter conhecido David e a fama televisa, em Los Angeles. Acaba sendo por vontade do marido a volta de Amy à Blackwater, mesmo que ela ainda soubesse “de cor o horário do ônibus desde o primeiro ano da faculdade”, e mostrasse certo desconforto em momentos avulsos (afinal, como poderia esquecer tudo que vivenciou lá? Por que razão própria haveria querer de voltar para um lugar que ficou em seu passado?). A dinâmica estabelecida pelo moralmente correto David e a típica garota explosiva, senão inconsequente, convence logo de cara, o que ajuda na inevitável jornada pela qual devem passar. Convence também o surgimento de Charlie e seu grupo de selvagens, ainda que eles possam parecer bastante estereotipados em dados momentos, e nenhuma atuação mereça ser exaltada (Charlie, na verdade, é interpretado por Alexander Skarsgård com bastante limitação: “Alguém enforcou o Flutie?”), assim como as do elenco de apoio, preenchido por peças importantes, como o violento “Treinador” Tom Heddon, o correto Xerife John Burke e um dos pontos altos de filme de Peckinpah, o limitado Jeremy.
Na verdade, tudo acaba se tratando de uma série de conflitos, nas mais diferenciadas instâncias sociais. O já citado choque cultural determina a falta de aceitação ao diferente (o duelo de músicas e trabalho chega a ser engraçado), enquanto que a perda de confiança no outro, que se abate no relacionamento do casal, demonstra o quão frágil é essa linha (“você é um covarde!”). Por fim, aquele que mais choca, desde 1971, é a brutalidade frente ao desprovidos de defesa, uma questão inteiramente proposta sobre o debate entre o contrassenso violento e a covardia. O filme de 2011, portanto, solidifica suficientemente a sua base, de uma maneira que se não se distancia do original, ao menos não comete o erro de ignorar a genialidade por trás dessas discussões e de toda a composição realizada. Consequentemente, o necessário desenvolvimento não pode ignorar o fato de que também precisa de fatores que justifiquem tudo o que foi demonstrado. Apesar de o Sob o Domínio do Mal atual não conseguir manter o interesse durante todo o tempo e, claramente, haver alguns problemas de ritmo e ideias que não chegam a ser plenamente desenvolvidas, acaba por abranger alguns dos principais aspectos levantados por Sam. Antes de adentrar nesse novo universo dentro dessa crítica (que já está se alongando, mas não desista), entretanto, há algo que precisa ser analisado: a questão religiosa.
Abordagens relacionadas a esse tipo de assunto geralmente são bastante interessantes e somam aos filmes que as utilizam. A possibilidade de se analisar a fundo o fenômeno religioso, buscando as suas origens em um meio, e as influências (comportamentais, sejam físicas ou mentais) que gera sobre o povo de determinado local, além, é claro, da própria procura pelo processo da individualização e de como as pessoas de adaptam (ou são absorvidas) por movimentos semelhantes, porém, é uma faca de dois gumes. Mesmo que a falta de maior profundidade possa soar apelativa, devo dizer, no entanto, que Sob o Domínio do Medo fica no meio do caminho em sua incursão. Esse novo conflito criado parece ser, a princípio, meramente mais uma nuance na relação entre David e Charlie (e a oportunidade de satirizar a seriedade com que a cidade de Blackwater tratava o time local, afinal, não haveria coisas mais importantes pelas quais rogarem a Deus?). A tentativa de aumentar cada vez mais a sensação de oposto entre os dois acaba por cometer esse deslize, ainda que o foco pareça estar sempre corretamente direcionado. Do conflito “ateu versus religioso fervoroso” (e não é possível absorver essa dimensão ao se assistir o filme) acabam saindo bons diálogos, como aquele que explícita a compreensível ameaça de que “uma coisa é não respeitar os moradores locais, se achando bom demais pra eles e outra, bem diferente, é duvidar do poder de Deus”, seguido de uma resposta simples, contundente ao filme: “acredito em apenas uma coisa da Bíblia; não cobices a mulher do teu vizinho”. Outro exemplo válido, mais voltado ao lado questionador, é quando discutem sobre a história que David está escrevendo; enquanto ele defende que aquele é um conto universal (experimente explicar para norte-americanos sulistas de mente fechada o quão universal poderia ser um conto sobre russos) sobre superação física, mental e de descobrimento de uma força moral inimaginável, Charlie, buscando confrontar David naquilo que teoricamente é o seu território e em seus ideais ateístas, coloca em dúvida a veracidade daqueles fatos quase fantásticos e pergunta se os russos não haveriam tido a ajuda de Deus. David, buscando convencê-lo de suas afirmações e reafirmando a sua teoria, diz: “Por que Deus ajudaria uma nação de ateus?”. Em resposta recebe uma frase solene: “Deus age por caminhos misteriosos” (como que justificando a possível intervenção divina como algo feito por um bem maior, pois, quem ganharia seria o Nazismo). Por fim, então, David completa: “A frase mais perigosa já pronunciada”. É possível perceber através desses diálogos, simples em perspectiva simplista, mas passíveis de um significado mais complexo, que Sob o Domínio do Medo está longe de ser refilmagem descartável e boba. Como citei, a profundidade alcançada pelo tema não chega a ser exemplar (basta ver que o assunto “morre” depois de suas passagens), mas para um efeito maior parece justificada. No que se refere à religião e as ações de seus intermediários (igrejas, padres, pastores, seguidores...) como ferramentas de domínio, mas mais do que isso, como algo factível em um processo de subversão dos seres humanos, afinal, nada parece justificar a existência de absurdos, como a violência, sendo realizados em nome de Deus (ou da crença Nele) senão a própria fé sendo transformada em algo não complacente, Sob o Domínio do Medo faz refletir, ainda que jamais justifique os fatos vistos por essa ótica. Olhando de uma maneira mais simples, para a violência como algo inerente ao íntimo dos humanos, a refilmagem acaba por formar um contraponto interessante: a natureza conflitante do ser racional. Algo que o permite seguir a lógica divina, que defende a boa conduta e recriminaria a violência, e, por outro lado, se comportar como uma besta selvagem. Ou, ainda, não possuir crença alguma, mas buscar o bem estar comum. O que define a pessoa acaba por ser é o conjunto de suas ações. Essa mensagem está lá, escondida, então só é necessário que se busque por isso; e que se entenda aquilo que David fala a Charlie no encerramento da discussão sobre os russos.
Antes desse megaparágrafo, citei sobre outro universo, no qual entraríamos. A ideia a partir de agora, mais descritiva, é focar no que discorre a partir da metade da duração do filme e no que foi herdado do filme de 1971. Como primeiro aspecto, a famosa sequência que envolve o enforcamento de Flutie e todas as suas consequências. A cena se dá inteligentemente; ocorre “sobre” uma narrativa televisiva que aborda os tão citados conflitos (de maneira verbal, mais uma vez demonstrando intolerância no choque de valores), um pouco sobre a questão da educação (e influências, seja do meio ou de outras pessoas) e algo que é já parece de consenso, que os EUA são uma nação historicamente violenta. Obviamente, a morte do gato de Amy pode e merece ser analisada sob duas formas bem distintas, sendo que a pergunta que leva a elas é a mesma: qual seria o motivo? Como a cena é passada logo após o suposto desrespeito de David pelo sermão do padre de Blackwater, a “vingança” parece ser o motivo mais aceitável, além, é claro, do natural fluxo de ameaças, que acabam se somando, aumentando de grau e gerando cada vez mais descontrole (ainda dá para entrar no mérito de ser a busca por acabar com a relação entre a garota local, querida, e aquele estrangeiro, longe de ser aceito. Charlie teria motivos de sobra para querer isso e influência sobre sua gangue). Esses acontecimentos acabam sendo, entretanto, bastante subjetivos, já que o próprio filme dá pouco tempo para que se pense em algo. O enforcamento se transforma, então, em algo que não precisa de um motivo específico para acontecer, o que, além de não limitar a opções narrativas, acaba por expandir a mesma discussão sobre a natureza humana; quase como que se a morte de Flutie fosse necessária para que se siga o fluxo inevitável ao fim. Inevitáveis, portanto, são também as consequências do evento. Subconscientemente, esse momento acaba sendo a primeira de duas quebras mentais do filme. É o ponto de início da autodefesa, do processo de mudança de mentalidade (David sempre defendia que qualquer tipo de briga era contrário aos seus princípios) e o reconhecimento final de que, às vezes, existe a necessidade de justiça, buscando não gerar mais violência, com as próprias mãos (movimento que já havia sido iniciado no piquenique, em defesa ao desprovido Jeremy). Na sequência, a tentativa por descobrir quem que cometeu esse ato de violência, abre ainda mais o horizonte. A relação do casal, que gradualmente vai cedendo às situações que acontecem, mostra na verdade diferentes poderes de reação. Se o início do filme mostrava uma paixão estável e frente às primeiras reações de ciúmes (o triângulo amoroso) e de diferentes visões (discussões sobre a falta de perspectiva de Blackwater frente ao mundo, “que não está em guerra, apesar de ter sido importante quando John Burke voltou do Iraque”, os “Cães de Palha” e esse eterno ciclo, da feminilidade, do machismo) tudo já fica abalado, não é necessário expor a que ponto vão as acusações quando aquele “negócio” se transforma de mental para físico. O próximo passo realizado sugere uma busca por respostas, que simboliza a tentativa de sentir-se menos exposto: Amy e David buscam saber quem que cometeu o crime. Enquanto Amy tem certeza que foi Charlie ou alguém de seu grupo, David, no melhor estilo cauteloso, diz que é injusto acusá-los sem que haja certeza disso. David então inicia um jogo para arrancar-lhes alguma confissão (para quem sabe, demiti-los e denunciá-los, lembrando que até esse ponto, todos os atritos ocorridos não poderiam ser classificados como crimes; jamais teriam validade perante a lei), eliminar a insegurança e, claro, estabilizar sua relação com Amy. Amy e sua personalidade intempestiva, entretanto, põem tudo a perder (quando força-se uma situação para obter algo, não se consegue isso). Toda essa passagem acaba por servir ao propósito de mostrar a perda de confiança naquilo que servia de apoio.
Como segundo aspecto, aquela que é melhor parte do filme de Peckinpah: o magistral cruzamento da sequência da caçada com o estupro de Amy. E este, portanto, é o ponto de maior expectativa também na refilmagem e, de longe, o aspecto mais decepcionante. Primeiro porque os cortes rápidos jamais geram a tensão necessária e ambas as cenas são desprovidas de uma maior criatividade por parte de Lurie, de forma que não geram o impacto necessário no espectador e logo se tornam esquecíveis. Discutível também o opção por preservar o espectador na cena do estupro; por essas e por outras que o filme de 71 é lembrado pela coragem. Como herança do original, porém, todos os aspectos “escondidos” são mantidos. A primeira dúvida que sempre vem à cabeça: por que David aceitaria ir caçar com Charlie? Aqueles que não pensaram suficientemente sobre o filme não hesitariam em responder que ele decidiu ir porque já havia sido convidado previamente. O que é engraçado, porque a decisão de ir caçar ocorre após aquele que havia sido o conflito mais grave com Amy, seguido ao enforcamento de Flutie. David age de maneira egoísta, como se quisesse mostrar para todas aquelas pessoas que não lhe respeitavam que era dono de suas próprias decisões; que ele, acima de tudo e todos, tinha confiança de que suas ações se davam sempre corretamente (embora ele possuísse diversos defeitos). Sua decisão nada mais é do que uma tentativa de desautorizar Amy, no que tange os conflitos que estavam tendo. Para efeitos práticos, o convite, contudo, é apenas uma isca para afastar David da esposa. David, porém, cego por seu desejo de autoafirmação acredita no chamariz, a questão não só da tradição local de caçar, mas de isso seja um “estilo de vida”, ou “... quando em Roma”. Grande paradoxo, já que David sempre reprovou a cultura de Blackwater, mas, no fundo, provavelmente gostaria apenas de ser aceito – mas aí já é fazer suposições demais. O que fala mais alto é aquela coisa machista, animalesca (“ele está ocupado tornando-se homem lá na floresta”), de provar que desafios impostos podem ser superados, ainda que seja o de matar um animal inocente com uma arma. E em oposto, a normal sensação de medo frente à proporção que o “jogo de xadrez” estava tomando (e quando David conta pra Charlie sobre Flutie, não é mais em tom de ameaça, mas de esperança que possa estar enganado). O fim da caçada não deixa dúvidas.
O mesmo tom de impotência que se abate sobre David é sentido por Amy. Enquanto, no caso dele, muito é sobre machismo, para ela se trata de feminismo. Sem querer adentrar a “relação entre pais sulistas e suas filhas”, que poderia definir muito dos sentimentos existentes dentro de Amy, e que justificariam, talvez, sua personalidade explosiva (quase que uma necessidade de aparecer, contrária a grande possibilidade de que tenha sido recatada durante boa parte de sua vida – mais uma coisa que ficou em seu passado), é possível notar o quão distintas são as suas atitudes se comparadas com as de seu marido, o que mostra que aquela ideia de que opostos se atraem cai por terra quando as primeiras dificuldades surgem no caminho. Amy, portanto, tem grande senso de justiça (é ela quem defende Jeremy), parece estar sempre disposta a obter conquistas (respeito, independência), mas peca na falta de controle emocional, possível imaturidade (como na cena do leite). É por indignação com David e reprovação pela pouca atenção que lhe é dada, aliados a um desgosto por ter sido desrespeitada por aqueles caipiras machistas, que Amy se mostra à janela, para eles – algo que eles jamais possuiriam. A violência segue a sua linha, até atingi-la. A famosa cena do estupro infelizmente não reflete a era em que o filme se passa, e não é clamar por algo apelativo, mas apenas fazer jus a algo que deveria e poderia ser perturbador. E não adianta para Amy tentar se defender dizendo que logo seu marido estaria de volta e que ninguém precisava lhe ensinar a ser homem: o destino dela está traçado desde quando sente aquele desconforto, no carro, ao chegar à Blackwater.
No momento em que Amy “faz amor” com Charlie, David está se sentindo cada vez mais perdido. No momento em que Amy é “rasgada” por Norm, David está se sentindo como uma besta ao matar o veado. Amy perde a sua inocência e David termina com os seus princípios. Amy parece ser sido engolida por forças naturais muito maiores do que as com que consegue lidar e é David quem parece ser coberto de sangue. Ela é a vítima e ele o estuprador. A montagem ajuda pela primeira vez nessa passagem e vira o seu ponto alto. A mistura de sons com os ambientes que não são de sua origem (naquele recurso genial do filme de Peckinpah) e que cruzam os sentimentos dos personagens, formam, finalmente, um ótimo conjunto. Ambos ultrapassaram um limite sem retorno. As discussões se seguem, ambos culpam a si próprios por serem covardes e ao outro por não ter feito nada para que as situações vividas fossem diferentes. Mas, então, vem a união e a promessa: “dentro da nossa casa, não seremos afugentados”.
Particularmente, adoro como os destinos se juntam na estória. Parece uma daquelas obras do acaso, mas tanto no original como aqui nessa refilmagem, a trama se aproveita bem do chamado destino para reunir as tragédias particulares. A cena do acidente, previsível pela mudança de câmera, mesmo assim, acaba cumprindo com o seu papel: a união da briga travada por David contra Charlie e seu grupo, e do “inocente” Jeremy com o Treinador Heddon. Tudo acaba por se tratar de pessoas reagindo ao um mundo, sejam elas vistas como mocinhos, vilões, inocentes, culpados, justos ou injustos e, com certeza, não é cabível que se tente buscar explicações para suas motivações (a mente humana é demasiada complexa), muito menos, caberia ao espectador julgá-los; eles são aquilo que são. A crueldade a que Jeremy é exposto é de longe o fato que gera mais discussão no filme. Mesmo que, eventualmente, ele tenha cometido erros e devesse ser julgado por eles, quem estaria apto a realizar esse julgamento? Uma coisa é a justiça com as próprias mãos, voltada ao bem (como quando Amy o defende), já a justiça com as próprias mãos, cega, buscando vingança é totalmente reprovável, pois só gera mais violência. Jeremy talvez fosse realmente culpado, mas eticamente uma pessoa sem as faculdades mentais plenas poderia ser julgada como outra pessoa qualquer? Possivelmente cada caso é um caso, e não seria Tom a pessoa mais indicada para isso. Após atropelar Jeremy e sentir-se responsável pelo que aconteceu a ele, David decide, junto à Amy, levá-lo para a fazenda e chamar uma ambulância para atendê-lo, podendo realizar, assim, o seu encaminhamento a algum hospital – o mais próximo ficava a 56 km. Por um infortúnio, e por consequência dos problemas que Jeremy possuía, ele havia acabado de matar a filha de Tom Heddon, sem querer, sem ter medido as suas forças e atitudes, por medo do pai dela – em uma cena visualmente interessante, e sequência que poderia ser mais e mais angustiante. Como era de se esperar, quando nota o sumiço da filha, Tom sai em busca dela e isso lhe leva até Jeremy. Com a ajuda de Charlie e dos outros, descobre que Jeremy está na fazenda e vão até lá tentar descobrir o Jeremy havia feito com Janice, e claro, descontar toda a raiva em cima do coitado. Chega-se, dessa forma, ao ponto final; a virada irreversível. Pensando, provavelmente, da maneira como citei antes dessa descrição, e após tudo o que se passou em sua vida, David assume o papel de defensor daquilo que acontece na sua casa e das pessoas, nesse caso, inocentes perante a violência (aqueles que não podem se defender ou que jamais se envolveram em algo cabível de represália). A fratura exposta no braço de Jeremy serve como a desculpa perfeita para que David se posicione (quase que por teimosia) frente àquilo que não suportava mais aguentar. O grande discurso de Sob o Domínio do Mal pode ser entendido diferentemente de pessoa para pessoa (particularmente, acho que nada justifica a violência), mas deve haver, imagino eu, um consenso de que toda a representação acaba por ser o passo final no processo de aceitação daquilo que não fazer parte do ser, mas acaba por ser inerente ao íntimo de todos: a violência. No fim, não há mais espaço para mais nada, e enquanto o filme de 2011 perde alguns dos sentimentos no pós-clímax, a cena do fogo no celeiro, direta, cumpre bem o que as palavras de Dustin Hoffman significam: “não tenho mais casa”. A última certeza que sobra é que “this world can be pretty fucked up”.
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