"Vejam a obra de Deus: Quem pode endireitar o que Ele fez torto?"
Eclesiastes 7:13.
"Não só acho que devemos interferir na mãe natureza, como acho que é isso que ela deseja."
Willard Gaylin.
É a partir destes pensamentos totalmente opostos, proferidos no livro do Antigo Testamento da Bíblia cristã e judaica e pelo psiquiatra e bioeticista americano Gaylin que Andrew Niccol (do bom O Senhor das Armas [Lord of War, 2005]) dá início, com uma ótima introdução, diga-se de passagem, trabalhada de maneira minuciosa, a sua interessantíssima ficção-científica, Gattaca.
Gattaca se passa em um futuro “não muito distante” (seria a Terra?), em que o nascimento normal (concedido através do amor e pela benção de Deus), deu lugar a fecundação genética, na busca de indíviduos cada vez mais perfeitos, sem os problemas extras de uma raça já bastante imperfeita. Acompanhamos Jerome (interpretado por Ethan Hawke), um desses indíviduos que nasceu com habilidades perfeitas, o que o faz ser o candidato perfeito para o próximo voo até Titã, a 14ª Lua de Saturno. De maneira bastante inteligente, Niccol, deixa nas entrelinhas que na verdade existe algo de errado com Jerome. Mas mais do que colocar essa dúvida na cabeça do espectador, Gattaca desde o início se mostra um grande questionamento a cerca dos limites da evolução humana, que desde a crença no divino vem se desenvolvendo científica, desenfreadamente.
Em questão de poucos minutos, o filme volta cerca de três décadas ao passado e mostra o nascimento de Vincent. Vincent nunca entendeu porque foi concebido em uma Riviera (não a francesa e sim o modelo de carro), mas sabe que a opção de seus progenitores por essa forma de nascimento, em uma época onde a ciência genética estava evoluindo, teria um impacto gigante em sua vida (e não é coincidência o pai de Vicent rejeitar o pedido de sua esposa de que o filho, que possivelmente só viveria até os 30,2 anos, se chamasse Anton, seu nome preferido). Dessa maneira, assim os primeiros problemáticos anos da vida de Vincent começam...
O lado crítico do filme nesse dado momento se evidencia de maneira bastante forte. Niccol, cria a partir do nascimento de Vincent um conceito de hierarquia social baseada na genética, que tem ali um exemplo individual perfeito dessa concepção, expansível ao todo. A obra faz questão de seguir a linha que raciocina o quão benéfico seria o impacto genético para a humanidade. Afinal, em tempos em que as barreiras entre os povos, cor da pele, sexo e opções sexuais caem por terra, seria correto criar uma nova forma de seleção não-natural discriminativa? Gattaca joga com essa dúvida até o seu final, e não faz feio ao deixar subentendida a ideia mesmo na mais simples de suas cenas; querendo ou não, o próprio tema sobre a genética se cruza com o mundo corporativo atual, já seletivo (e a Gattaca do filme nada mais é do que uma grande corporação, daqueles que impõe um modelo de sonho às pessoas).
A vida de Vincente segue, até que alguns anos depois seus problemas aumenta com o “nascimento” de Anton, o irmão que veio ao mundo para que Vincent “tivesse com quem brincar”. Anton é um ser praticamente perfeito, sem metade dos problemas de Vincent; a comum rivalidade entre os irmãos (e também de todos os seres) aqui ganha um componente desequilibrador: Anton é melhor, por ter sido criado geneticamente, que seu irmão em tudo. A maldita existência de Vincent fica então cada vez pior; enfrenta a rejeição de sua família e da sociedade e sua condição humanamente inferior. O sonho de visitar o espaço, algo que não seria possível para alguém de tão frágil concepção, entretanto, é o elemento motivador que faz com que Vincent busque expandir seus limites e quebrar todas as barreiras impostas pelo ambiente ao seu redor. Gattaca funciona, então, também como um filme sobre a superação – a árdua jornada do ser excluído.
O trabalho de ambientação é talvez o ponto mais alto de Gattaca. É com bastante sabedoria que o futuro mostrado no filme não é supertecnológico; de forma a criar uma obra atemporal (basta ver o designo retrô que acompanha desde as vestimentas até os modelos de carros e casas mostrados), Niccol aposta em uma paleta de cores sólidas e opacas. O filme é azul, amarelo, vermelho e verde e funciona muito bem dessa maneira. A beleza da simplicidade aliada a um tema que com certeza vai estar muito em voga daqui para frente é garantia de que Gattaca terá seu espaço garantido na galeria cinematográfica durante muito tempo, correndo pouco risco de envelhecer (a exemplo de outras grandes ficções como 2001, Alphaville, O Vingador do Futuro ou, mais recentemente, Minority Report).
Se falamos no ponto mais forte do filme, o mesmo não se pode dizer do time de atores. Os rostos são conhecidos: o já citado Hawke, Uma Thurman, Jude Law, entre outros. Nenhum desempenha um grande papel, de forma que as relações entre os personagens não são o grande atrativo da trama; Hawke e seu irmão funcionam, ele e Law também, mas o tempo de desenvolvimento em cima desse aspecto não é muito grande. Gattaca, afinal, não chega a ser prejudicado por esse fator, mas atuações mais inesquecíveis poderiam ser a garantia de uma obra ainda mais completa.
A jornada de Jerome segue então, em meio a romance, dramas existenciais, suspense policial, até que ruma ao final. Sem estragar o filme com spoilers (afinal muito do que acontece e merece ser analisado no filme só o pode ser feito para quem já assistiu a obra), Gattaca parte para um lado transcedental. Através da superação é sim possível encontrar seu lugar nesse mundo; a questão toda é que o conceito de localidade não é real, afinal a humanidade sabe muito pouco sobre si mesmo e sobre todo o ambiente ao seu redor; e não sabe também o suficiente para definir se o rumo da ciência está correto. O que, certamente, merecia ter mais atenção.
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