Arte se relaciona muito com a elaboração de uma expectativa. Pode ser algo que você espera ser representado e é contemplado ao presenciar aquilo de forma concreta. Ou pelo contrário, se desaponta porque já sabia antes e visualiza como algo óbvio. Mas arte com essência (não sei se esse é o termo correto) se edifica através do que não se espera. Uma expectativa quebrada pode ser muito decepcionante assim como pode ser uma grata surpresa, desde um acalento a nossas esperanças como um choque de verossimilhança. "Era uma vez em Tóquio" caminha por mais de 60 anos nessa encruzilhada de sensações e chegou até mim provocando-me expectativas tão semelhantes quanto divergentes ao que qualquer outra pessoa que assistiu também tenha passado.
Comecei a assistir sem saber a trama. Gosto disso. Porém, foi um começo difícil. Dentre minhas diversas pendências cinéfilas, o cinema de Ozu era uma delas. Não só a premissa me era desconhecida, como a abordagem do autor também. Muitos diálogos travados, decupagem "careta", corta para um, manda a fala, corta para a outra, reafirma a fala anterior. Quebras de eixo incomodavam a continuidade das cenas, planos e mais planos estáticos em que o único movimento notório era o aflitivo vai e vem dos leques nas mãos de todas as personagens. Questionava isso mentalmente. Influenciado pelo valor histórico que a crítica cinematográfica impõe, segurei a ideia de que aquilo tem um algo mais (talvez nem precisasse disso).
Eis que o casal de longa data chega a Tóquio. Houve uma preparação para o que estava por vir. A mensagem começa a ficar mais clara, mas pouco parece receber a devida atenção do autor. Quer dizer, não é bem isso. Uma história muito simples e atemporal vai sendo emoldurada diante de nossos olhos. Filhos sem tempo para os pais. Uma constante impressão de deslocamento. Aí alguns conceitos se tornam mais evidentes. De repente, uma conversa com quebra de eixo revela quem está ganhando uma discussão. Ou quem não está prestando atenção na conversa. Ou que aquela fala é direcionada a nós. A estabilidade visual contrasta com a instabilidade dos relacionamentos presentes. A passividade da direção aumenta a angústia da falta de rumo dessas pessoas. Assim, a memória pessoal interfere na imagem. A emoção que demora a ser desabafada na tela busca por preenchimento na vida de seu público. A partir de um momento específico de uma família, de um momento específico de um país, disposto a apagar seu passado assolado, um tema se universaliza. Os detalhes mais simplórios vão saltando aos olhos. Mesmo um raro travelling, que poderia ser libertador, carrega a carga de melancolia que vai se alastrar até o último momento, quando você não quer que um filme arrastado acabe.
Porque a vida não pode acabar. Para seguirmos em frente, trabalhamos nossa humanidade para aceitar o oposto, para conseguir conviver com o que não esperamos. Conforta, mas também assusta. Afinal, conforme negamos mais e mais nossos sentimentos, como saberemos se resgatamos as emoções que precisávamos? Não é fácil. Esse filme não é fácil. É ambicioso ao não ser. Nega a esperança para, no minuto seguinte, abraçá-la. Mostra o que há de frustrante no todo e o fruto da felicidade nos detalhes mais ínfimos. O filme acaba e a arte perdura, em expansão. É um trecho de vida que só se vive uma vez. É uma vez em Tóquio. É uma vez em qualquer lugar.
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