Zé do Caixão nunca foi unanimidade aqui no Brasil. Se já não o era nos anos 1960 e 1970, quando fazia suas obras trash com tão pouco, hoje em dia é mais motivo de piada do que qualquer outra coisa. Fato esse que não deixa de ser triste, pois o Zé, o nosso Zé, é muito cultuado fora daqui, principalmente pelos fãs do estilo. Em O Ritual dos Sádicos, (idem, 1970) – também conhecido como O Despertar da Besta, nome esse que considero até mais adequado –, o próprio Zé brinca com a diversidade de opiniões sobre ele à época, colocando-o em um julgamento onde os jurados o acusam das mais diferentes infâmias.
Mas não é necessariamente dessa discussão que vive O Ritual dos Sádicos. Essa metalinguagem do Zé é apenas um dos instrumentos para falar sobre um assunto polêmico até hoje, as drogas. Disseminados na era hippie dos anos 1960, esses agentes psicoativos eram considerados pela parte mais conservadora da sociedade o que faltava para o despertar da besta. O ser humano então seria um animal propenso a realizar os atos mais atrozes ou as drogas que transformam esse ser em um animal brutal?
Em torno dessa pergunta básica que gira a premissa do filme. Nele, um psiquiatra vai até a polícia contar sobre seus experimentos envolvendo LSD injetado em cobaias humanas. Sua pesquisa consistia em dar doses da droga para viciados e leva-los ao cinema para assistir os filmes do Zé do Caixão. A partir daí as mais variadas experiências lisérgicas, fantasmagóricas e bestiais aconteciam.
Ao desenrolar do filme, porém vamos percebendo que o limite da truculência humana não consiste apenas em desafogar seus mais ímpios desejos sexuais, mas tudo passa também por um ritual sádico de domínio sobre o outro. A consistência de cada cena está sobre isso, o domínio machista sobre a mulher objeto de desejo.
Ritual dos Sádicos é quase um cinema de vanguarda, aquilo que Zé fazia despertava interesse de muitos, contando até com elogios de Glauber Rocha. Por outro lado, como disse no começo do texto, já naquela época seu jeito escrachado era condenado por alguns, que o consideravam mórbido demais e até apelativo. O Ritual dos Sádicos tem tudo isso. Com um estilo de filmagem – não de montagem – semelhante ao que se via na Nouvelle Vague, o filme flerta também com o Cinema Marginal, quando mostra o cenário caótico do submundo brasileiro suburbano.
Enquanto as cenas do cotidiano são retratadas em preto e branco, temos a inversão para o colorido a partir dos rituais psicodélicos na parte final do filme. Com cenas bizarras de pesadelos ilusórios, onde o personagem passa por torturas psíquicas ligadas à violência e sexo, presenciamos a tormenta dessas pessoas enclausuradas em seus sonhos.
Não bastasse toda a retórica que fazia na época, Ritual dos Sádicos permanece atual ao debater temas que até hoje são tabus. Ainda contamos com cenas engraçadas, como bundas com rosto soltando anéis de fumaça – sim! –, e ainda os diálogos jocosos entre especialistas que listam os males do “tóchico” – isso mesmo, com “ch”, porque não tem o som de “x” – para os cidadãos de bem.
O que pode parecer apenas um amontoado de cenas psicóticas e até misóginas, no fim se mostra como uma visão niilista acerca da humanidade. Pessoas comuns que cometem os atos mais atrozes e culpam substâncias externas, é disso que tudo se trata. E até onde o ser “humano” vai quando se considera apto de fazer o que bem entende, inclusive prejudicando seu semelhante? Meu amigo, essa resposta é fácil e está no sorriso de Zé ao final do filme. E eu diria que você já sabe antes mesmo de ver.
*Texto escrito originalmente para o blog Cine Alphaville.
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