Poucos arriscariam dizer que a história de Ryan Gosling na indústria cinematográfica tomaria o rumo que tomou. Galã desde sempre, começou sua carreira em comédias românticas arrancando suspiros de adolescentes. Mas nem tudo são flores nesse meio que cultua a beleza e até age com preconceito quando o ator quer mostrar que pode ir além. Assim como Brad Pitt e Leonardo DiCaprio, que nos anos 1990 eram sex symbols que penaram para conseguir o respeito da academia, Ryan Gosling só convenceu quando se tornou pupilo do diretor Nicolas Widing Refn. Em Drive (idem, 2011) e Apenas Deus Perdoa (Only God Forgives, 2013), o ator deu vida ao protagonista de Refn e, ao ser o ponto de referência dessas obras, brilhou com atuações difíceis que exigiram dele muita expressão comedida de um protagonista praticamente mudo.
Para a surpresa da crítica, Gosling anunciou que roteirizaria e dirigiria seu primeiro filme, Lago Perdido (Lost River, 2014). Já nos teasers de divulgação notou-se a influência de Refn no trabalho, com grande apelo ao sensorial e à linguagem visual. Por outro lado, Lago Perdido carrega diversas influências, que contribuem para sua construção narrativa através da estética.
O enredo da obra se divide em dois núcleos, o da mãe e o do filho mais velho. Billy (Christina Hendricks) é uma mãe solteira, com dois filhos, que está em dívida com o banco. Ela deve três meses de um empréstimo e se vê em desespero quando o banco ameaça lhe tirar sua casa. Após uma reunião com um gerente do banco, Dave (Ben Mendelsohn), este lhe indica a um trabalho misterioso, ao qual ela é forçada a aceitar. Chegando ao local, ela se depara com um clube noturno dos mais bizarros, onde mulheres fazem performances artísticas que misturam sangue teatral e danças fetichistas. Além disso, ela tem a oportunidade de fazer dinheiro exta no subsolo do local, conhecido como “a concha”, que consiste num recipiente de acrílico onde as mulheres se trancam e os clientes podem observá-las.
O outro núcleo da obra é o de Bones (Iain De Caestecker), adolescente que passa o dia a roubar cobre de casas abandonadas, a fim de ajudar no sustento de sua família. Seu antagonista é Bully (Matt Smith), um violento rapaz que se proclama dono da cidade abandonada e persegue Bones por causa do cobre das casas. Em uma dessas fugas, Bones encontra uma cidade submersa, que posteriormente ele descobre ter sido inundada por uma represa aberta anos antes. Bones acaba se dividindo entre sair da cidade e buscar uma vida melhor com Rat (Saoirse Ronan) ou ficar em casa para cuidar de Franky (Landyn Stewart), seu irmão mais novo, e ajudar sua mãe, Billy.
Nota-se, nos últimos tempos, uma onda de filmes americanos dedicados a mostrar a crise do país em cidades do interior. O glamour hollywoodiano perdeu espaço para filmes independentes com muito mais conteúdo e crítica à situação econômica do país, muito disso embalado pela crise capitalista de 2008. Amor Bandido (Mud, 2012), Joe (idem, 2013) e a primeira temporada da série True Detective, da HBO, são bons exemplos disso. Ryan Gosling mesmo trabalhou em O Lugar Onde Tudo Termina (The Place Beyond The Pines, 2012) que explora a violência como resposta às dificuldades econômicas de uma família. Em Lago Perdido essa crítica é ainda mais forte. Sutilmente abordada pelo roteiro e escancarada pelo monólogo de um desiludido taxista imigrante, vivido por Reda Kateb.
Bom notar no enredo a ligação dos personagens a suas casas, sentimento ambíguo à falta de lar dos mesmos. A devoção ao passado, ao que viveram naquelas casas os prende ali, sem a possibilidade de seguir em frente. Retrato perfeito disso é a vó de Rat, que passa os dias na frente da televisão assistindo a cenas de seu casamento enquanto se veste com roupas de luto. Outro exemplo se dá no começo do filme, quando Bones dialoga com um morador que está indo embora do bairro e aconselha o jovem a fazer o mesmo. Nessa cena em especial há um clima de documentário jornalístico que mostra que esse é um problema real e que merece atenção do espectador no restante do longa.
Se com os lançamentos das primeiras imagens de Lago Perdido, a expectativa de um filme muito ligado à estética de Refn, a obra também não fica apenas nisso. Há sim influência do diretor, principalmente nas cenas à noite e no clube, que misturam sensualidade e sanguinolência. Por outro lado, o estilo onírico de Lago Perdido também funciona como uma ode a Andrei Tarkovsky e David Lynch, casando perfeitamente seus estilos visuais e narrativos.
Aliada ao estilo visual do filme há sua bela trilha-sonora, principalmente amparada pelo tema principal, a música Yes, da banda Chromatics. Além disso, Shell Game, do duo eletrônico Glass Candy trabalha o ritmo narrativo do clímax, com uma montagem que une os dois núcleos no terceiro ato. Aqui principalmente se nota a influência de Refn, com trilha, imagem e montagem dialogando no desenvolvimento da narrativa.
A estreia de Gosling atrás das câmeras foi das mais corajosas. Dividindo opiniões, ele buscou um filme único que aliasse elementos estéticos de vários outros diretores. É comum que diretores, em suas estreias tenham a necessidade de implantar referências e caiam na armadilha de não achar seu próprio estilo. Apesar de Gosling, em seu princípio, ainda não ter um tato tão apurado para sua própria estética, seu trabalho aqui é louvável. O ritmo de seu filme prende principalmente por suas acertadas escolhas de direção de fotografia e montagem, colocando sua história em segundo plano. Parabéns, e que venha o próximo.
*Texto escrito originalmente para o blog cinealphaville.wordpress.com
Tava em dúvida sobre esse filme, sua crítica me animou, vou assistir, obrigado e parabéns pela bela crítica.😁
Pois veja mesmo, ainda mais se tu gosta de um Refn e/ou Lynch.