Stanley Kubrick pode ter sua carreira comparada a uma redoma de ouro incrustada de perólas e diamantes. Em sua relativa pequena filmografia (se comparada a outros grandes diretores) não se encontra bombas ou filmes dispensáveis, algo que praticamente todos os diretores realizam inevitavelmente em algum ponto de suas carreiras. Entretanto, com Kubrick isso não aconteceu, desde o seu primeiro filme A Morte Passou por Perto até o seu último e ousado trabalho De Olhos Bem Fechados, o diretor manteve o genialismo em seu estilo único de contar uma história, ou adaptar uma (na verdade apenas seus dois primeiros filmes não foram adaptações de algum romance), e esse foi o caso do épico Spartacus, estrelado por Kirk Douglas, hoje uma lenda viva.
Na Roma Antiga, Spartacus (Douglas) foi um gladiador que organizou um exército de escravos para lutar contra a escravidão romana. Ex-escravo de origem trácia, Spartacus é comprado por Lentulus Batiatus (Peter Ustinov), um rico mercador que possui boas relações com Marcus Licinius Crassus (Laurence Olivier), um importante político e general romano que deseja transformar a república romana em uma ditadura. Além de mercador, Batiatus possui uma 'academia', onde treina homens fortes para serem gladiadores e lutarem entre si até a morte, tudo isso para o entretenimento dos patrícios e os nobres romanos. Quando Crassus, na companhia de duas mulheres, ordena Batiatus a organizar uma inesperada luta entre seus homens, Spartacus e seu amigo Draba (Woody Strode) são convocados para a luta mortal. Draba se recusa a matar seu companheiro e acaba sendo morto por um dos soldados do mercador. O acontecimento abala bastante Spartacus, e após ver sua amada Varinia (Jean Simmons) sendo vendida e levada à Roma, o gladiador se rebela e começa formar um exército de escravos espalhados por toda a Itália, um número que, segundo consta nos relatos, chegou a 100 mil ex-escravos.
A obra de Kubrick é riquíssima e foi um marco dentro do gênero épico, uma verdadeira fonte histórica maravilhosa para os mais curiosos. O choque do espectador ao ver duas mulheres escolhendo homens para a luta fatal como se estivessem escolhendo galos para uma briga é impressionante, tamanha a diferença de costumes entre os dias de hoje e milhares de anos atrás. Há uma tensão sexual entre essas mulheres e os gladiadores, elas não querem apenas vê-los lutando, é quase o desejo de um homem em ver duas mulheres se beijando e se apalpando. Kubrick consegue transmitir esse erotismo que envolve a crueldade banal daquele tempo como uma sutileza maravilhosa. Atrás das grades, eles não são apenas gladiadores, mas também objetos sexuais, a dor e o prazer andam juntos.
Aliás, esse erotismo sutil permeia vários momentos da obra. É sabido que tanto na Grécia quanto na Roma antiga, a prática homossexual era aceita e incentivada, devido ao enorme valor que os homens davam ao sexo masculino, deixando para as mulheres o papel de meras reprodutoras (e obviamente para os prazeres carnais). É claro que não há nada explícito no filme, entretanto o diretor deixa brechas em algumas cenas, como quando Antoninus (Tony Curtis), um escravo letrado e declarador de poesias, entra na banheira para enxugar seu mestre Crassus, e esse pergunta:
- Antoninus, você come ostras?
- Quando há, mestre.
- E caracóis?
- Não, mestre.
- Você considera moral comer ostras e imoral comer caracóis?
- Não, mestre.
- Então é só uma questão de gosto, não é? (...) Eu como ostras e caracóis .
É nesse trecho metáfórico que se encontra o desejo sexual entre esses homens, que exala um tipo de machismo tão diferente da nossa época. A cena é conduzida brilhantemente, mostrando os dois homens através de um cortinado e o personagem de Curtis a lavar o corpo esbelto de Olivier, esfregando os braços de seu patrão cada vez mais forte à medida que o assunto avança. Quando os dois saem do quarto de banho e o cortinado já não os cobre, as implicações homossexuais dão espaço para discussões políticas, sutilmente. A ousadia de Kubrick também se encontra na relação entre Spartacus e Varinia, a própria Jean Simmons declarara que nunca tinha feito cenas de amor como as mostradas no filme antes em sua carreira. A personagem de Simmons aparece quase nua tomando banho no lago e os momentos íntimos do casal estão a ponto de explodir em um sexo fervoroso, se não fosse a época em que a obra fora realizada. A figura viril de Kirk Douglas, como uma estátua grega, com feições rígidas e pernas torneadas, ajuda nessa concepção de desejo sexual dos corpos masculinos, tanto entre eles quanto num plano 'universal' de representação, por assim dizer, onde há também outros aspectos envolvidos, como o narcisismo, que não será discutido aqui.
Deixando minhas divagações guiadas pela mente e o libido um pouco de lado, outro aspecto impressionante é a seriedade do épico. Apesar de ser uma lenda, Douglas não é um ator extraordinário, mas ele, assim como Mel Gibson em Coração Valente, consegue passar toda a paixão em sua luta pela liberdade da população escrava. Em um momento-chave, Spartacus afirma que tem a certeza que seu exército vai triunfar, pois para os escravos, tanto a vitória quando a derrota significa a liberdade, assim a perda é muito maior para os nobres, caso saiam perdedores. O processo de agregação desses escravos por Spartacus não é feita paulatinamente, pelo menos não diante de nossos olhos, quando nos damos conta, os ex-escravos já estão reunidos e clamando Spartacus como um herói messiânico. Mas a força de seus argumentos é tão poderosa, que fica difícil não se convencer do poder de suas palavras e atitudes.
Há ainda as disputas políticas entre os políticos do Senado e nobres romanos. Crassus, que após a derrota da revolta dos escravos fez um pacto com César e Pompeu Magno para formarem o Primeiro Triunvirato e assim tomar a possa plena de Roma, tem como seu maior rival o revolucionário Sempronius Gracchus (Charles Laughton, sempre grandioso), que desafia o lado conservador ao qual Crassus faz parte com suas reformas republicanas, um fator pouco explorado no filme, mas que incluía, dentre outras transformações, a reforma agrária e um tribunal de corrupção. Entretanto, tanto Crassus quanto Gracchus querem acabar com Spartacus, ou como Crassus mesmo diz sabiamente, com a lenda de Spartacus (que geralmente é mais forte que o homem em si), cada um à sua maneira.
A sequência da batalha é impressionante. Os romanos se aproximando dividos em grupos, que vistos de longe parecem blocos de mármore em movimento, é de uma sincronia incrível. Foram usados em torno de 8500 figurantes para essas cenas e Kubrick ousa ainda mais, quando mostra uma mão sendo cortada e o sangue jorrando. Sem sombra de dúvida, esse filme serviu de inspiração para outros épicos que surgiriam no futuro, apesar de ainda estar entre os maiores do gênero (talvez o maior, junto com Ben-Hur). O filme ainda conta com uma notável trilha sonora e cenários maravilhosos.
Kirk Douglas, além de estrelar a película foi também o produtor executivo (com Douglas nesse encargo, Kubrick teve seu poder limitado, sem completa independência sobre sua obra - um fato histórico dentro do Cinema -, sem contar a participação do diretor Anthony Mann nas cenas iniciais, mas ele acabou desistindo do projeto). Sua atuação, como dito acima, é convincente e feita com decência, mas sempre faltou no ator um carisma especial, mesmo nos papéis em que interpretava personagens mais durões. Laurence Olivier e Charles Laughton (que viria a falecer apenas dois anos depois) dispensam comentários, dois gigantes do Cinema, deslizam na tela, e Laughton fica com as melhores falas do roteiro. Um fato curioso é que seu colega de trabalho, Peter Ustinov, que ganhou merecidamente o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante (sua atuação é impecável ao dar o tom cômico apropriado ao seu personagem e assim deixá-lo mais 'leve'), o ajudou a escrever seus textos devido à falta de compreensão por parte de Laughton do roteiro original. Isso somado a produção de Kirk Douglas mostra como o roteiro não teve tanta predominância de Kubrick em seu processo de criação.
Já Tony Curtis tem uma participação tímida de início, mas sua importância vai crescendo à medida que vai ficando mais íntimo de Spartacus, e seu personagem sintonizado em poesias é fundamental para a reflexão de Spartacus quanto à importância do conhecimento, e finalizando, Jean Simmons, com seu aspecto rígido e esbéltico que lembra vagamente Audrey Hepburn, é competente em mostrar uma mulher totalmente dedicada ao seu amado. A sequência final não poderia ser mais messiânica (literalmente falando) e inesquecível, em um filme que entrou na lista dos melhores de todos os tempos na última lista feita pela AFI, com todo o merecimento possível.
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