"A Rosa Púrpura do Cairo" é provavelmente, junto com "Cinema Paradiso", o melhor filme de homenagem à Sétima Arte. Misturando comédia, drama e principalmente fantasia, Woody Allen nos apresenta uma obra impecável, com certeza uma de suas melhores.
A época é a Grande Depressão. Num país onde a maioria está no maior aperto, Cecília (Mia Farrow), é uma garçonete que ama ir ao cinema. Ela é casada com o malandro Monk (Danny Aiello), um homem que só pensa em jogos, bebidas e mulheres. Por mais que Cecília insista, ele não quer saber de arrumar um emprego, logo é sua mulher que sustenta a casa. Ela então usa o Cinema para escapar da amarga realidade em que vive. Após ser despedida do emprego por causa de sua constante distração e de uma briga feia com o marido, Cecília passa a ir sucessivamente ao cinema para assistir ao filme de nome homônimo. Depois de várias sessões, Tom Baxter (Jeff Daniels), um personagem aventureiro, coadjuvante e de sorriso charmoso que sempre nota a constante presença da moça, resolve sair da tela para conhecê-la pessoalmente.
No começo do filme, assistimos Cecília conversando com a irmã na lanchonete onde trabalham sobre os astros e estrelas hollywoodianas, mais especificamente sobre Ginger Rogers e seus affairs. Nessa conversa percebemos como ela transporta sua mente para essa vida que vê como extraordínária, longe de qualquer problema banal. Nenhuma época como a da Grande Depressão seria mais propícia para mostrar uma moça sonhadora, afinal, as pessoas não sabiam como seria o dia de amanhã, logo, só restava sonhar, conversar sobre arte, viajar internamente, mesmo que fosse carregando (e quebrando) pratos. Por ela ter sido uma das maiores representantes da Era Dourada dos Musicais, foi uma boa sacada de Woody Allne usar Ginger Rogers nas conversas de Cecíla. Na verdade esse gênero obteve maiores proporções depois da Grande Guerra, justamente para que o público pudesse esquecer um pouco as amarguras que o combate tinha trago às suas vidas, isso explica os números musicais alegres e glamorosos e o enredo sem comprometimento com a realidade, que deu fama a Rogers, Fred Astaire, Jude Garland, Gene Kelly e tantos outros.
A fuga de Tom Baxter do filme é genial. A atitude do personagem afeta todo o elenco, que fica sem saber como continuar a história, apesar de Baxter ser um personagem secundário e de sua história na obra não ser a mais importante, como uma das atrizes faz questão de pautar sempre quando tem oportunidade. Surgem várias discussões entre os atores "presos" e até mesmo com o público, alguns insatisfeitos, alguns se divertindo com toda a situação. Essa amálgama entre os atores não causa muita dispersão do público, que enxerga mais uma oportunidade de se divertir e esquecer os problemas lá fora. Baxter ainda prejudica os produtores e o ator que o interpreta, Gil Shepherd, que se desespera ante a possibilidade de ter sua carreira em ascensão destruída se todos os Tom Baxters decidirem fugir das cópias país afora, e pior, se algum deles sair roubando ou atacando mulheres. Humor genial, típica desse diretor.
A absurdidade das situações não poderia ser maior, porém Woody Allen torna tudo real, a metalinguagem do filme é tão poderosa que no momento em que assistimos ao filme, só o que queremos é estar na pele de Cecília. Imagina poder estar ao lado do seu personagem preferido? Caminhar com ele no parque, fugir de um restaurante sem pagar a conta, e o melhor, se ele se apaixonar perdidamente por você? Com certeza é o sonho de qualquer cinéfilo, e é indiscutível que Allen tinha os amantes dessa arte como público-alvo.
Devido à construção alienada e apaixonante que os criadores e Gil deram ao personagem, para Baxter tudo são flores, ele não faz a mínima idéia da crise do país e dos problemas reais, afinal, nos filmes (pelo menos na maioria produzida naquela época) os personagens eram cheios de vida, ricos e bonitos, e os finais eram felizes. Com o tempo, a criação ao qual Gil Shepherd deu vida vai percebendo os problemas que julgava não existir, desde a falta de dinheiro até o carro que não liga sem a chave. Sua inocência também é quase comovente, principalmente quando está em um bordel conversando sobre a vida e rodeado de meretrizes, é a cena-chave para mostrar sua falta de malícia.
A parte técnica também está impecável. O filme recria muito bem a parte pobre de Nova Jersey, mostrando a desolação do lugar, as praças e parques vazios e as filas dos pobres por uma refeição. O ambiente do filme "A Rosa Púrpura do Cairo" também recria perfeitamente o estilo de filmes da década de 20, tanto na caracterização dos personagens (roupas, olhos maquiados e personalidade bem definidas) quanto nos cenários (o salão de "Copacabana" poderia ser perfeito para um show de Rogers e Astaire).
Gil Shepherd se envolve diretamente com Cecília, ela terá então que fazer uma difícil escolha: decidir-se entre ficar com Baxter, um ser fictício, ou com Shepherd, um homem real. É notório como Woody Allen mexe com as concepções que a maioria das pessoas tem das grandes estrelas, fazendo com que tanto Shepherd quanto Baxter se tornem possibilidades reais na vida da moça. Entretanto temos uma bela surpresa ao final do filme, quando Cecília finalmente se decide por ficar com o ator, a possibilidade que parecia tão alcançável se torna uma desilusão.
Se a vida de Cecília é real, e se o real é completamente diferente dos filmes, seria inconcebível uma final feliz para ela (a não ser que ela tivesse escolhido ficar com Baxter). Apesar do envolvimento de Shepherd, tudo não passou de uma grande fantasia, como se Cecília tivesse assistido a uma obra onde ela própria fizesse o papel principal. Quando o filme acaba, só resta buscar outra película como válvula de escape e assim continuar a sonhar. E ainda bem que ela não chegou ao ponto de abandonar sua grande paixão, pois que alternativa ela teria para conseguir continuar vivendo (ou melhor, sobrevivendo)? Dessa vez a obra escolhida é "O Picolino", estrelado por Ginger Rogers e Fred Astaire.
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