Roman Polanski é um diretor francês que conseguiu renome nos Estados Unidos com obras-primas de gêneros variados, como o terror "O Bebê de Rosemary", o noir "Chinatown" e os dramas "Tess" e "O Pianista". Entretanto, um de seus melhores trabalhos, que serviu como base para obras cinematográficas posteriores (inclusive suas próprias) foi realizada ainda no começo da carreira, o maravilhoso "Repulsa ao Sexo".
A história se passa na Inglaterra. Carol Ledoux (Catherine Deneuve) é uma linda e quieta jovem que trabalha em um salão de beleza como manicure. Sua vida parece, num primeiro momento, bem pacata: mora com a irmã num bom apartamento, apesar dos problemas financeiros, e tem um namorado, Michael (Ian Hendry) - na verdade sua relação pode ser definida mais como 'um rolo', e por uma boa razão: Carol tenta de várias maneiras 'fugir' dos assédios desse homem apaixonado por causa de uma misteriosa repressão sexual, repressão essa que será o tema central do filme.
Polanksi realiza um trabalho genial. A começar pelos créditos iniciais da obra, onde vemos um dos olhos de Carol sendo focado por vários minutos: o diretor faz questão de mostrar que algo bastante errado está por vir através da inquietação da pupila da jovem. O roteiro tem um desenvolvimento lentíssimo, apesar de já estarmos cientes dos problemas sexuais da manicure logo nos primeiros minutos após os créditos, Polanski conduz tudo com muita calma, mostrando a relação de Carol com a irmã Helen (Yvonne Furneaux), e por sua vez a relação conturbada da irmã com o namorado casado. Há ainda a exploração da inquietação de Michael devido à constrição de sua amada de ter sua virgindade tirada.
"Repulsa ao Sexo" é pontuado por magníficas passagens. Fazendo inteligente uso do lento desenvolvimento da obra, o diretor parisiense cria um mistério crescente em volta de Carol. No início, ela não esconde sua revolta de ver a irmã saindo com um homem comprometido, e ações como pertences pessoais de Colin em seu apartamento e os gemidos sexuais de Helen deixam claro seus bloqueios, apesar do problema não afastar seu ar perdido e ao mesmo tempo angelical, como quando está andando pelas ruas, trabalhando no salão ou realizando os afazeres domésticos.
Quando a irmã viaja com o amante, Carol fica sozinha, é a partir daí que problema mental dela vem à tona, passando por alucinações aterrorizantes e assassinatos brutais. A fluidez do filme é espetacular, sem pressa, Polanski nos choca com as mudanças psicológicas de Ledoux, quase todas ocorridas no ambiente claustrofóbico de seu apartamento. Os motivos da sexualidade reprimida que a leva a um gradativo quadro esquizofrênico ainda é misterioso e não haverá maiores explicações em momento algum, mas qualquer explicação poderia se tornar forçada ou no mínimo sem importância para a obra em si, afinal, há inúmeras suposições que são estudadas para explicar problemas mentais, e não seria de bom gosto tentar encaixar algum à vida de Carol. A virtude desse clássico está no fato já falado da evolução esquizofrênica, da direção precisa e do trabalho primoroso de Deneuve, um verdadeiro achado, falarei dela mais tarde.
No primeiro parágrafo eu disse sobre a influência do filme em trabalhos das décadas seguintes, talvez o maior exemplo a ser citado seja o aclamado "O Iluminado", de Stanley Kubrick. Nos dois filmes o desenvolvimento da loucura é explicitado de uma forma bastante íntima para o espectador, acompanhamos o desenrolar de pequenas ações até os atos mais macabros e impensáveis dos protagonistas, que primeiramente são personagens aparentemente dóceis, Carol Ledoux ainda muito mais que Jack Torrance. Entretanto, em "O Iluminado" a passagem da lucidez para a loucura desenfreada é feita mais rapidamente, esse fato foi até alvo de críticas, por acabar sendo pouco convincente, mas a atuação de Jack Nicholson e as cenas antológicas que se seguem - com muito sangue e perseguição, também num ambiente fechado - apagam por completo qualquer tipo de falha em relação à fidelidade com a realidade. Provavelmente a explicação para essa urgência da obra de Kubrick seria o fato de Jack ser possuído por um espírito maléfico, o que tornaria a sua rápida mudança bem mais aceitável. Já no filme de Polanski, o espectador apenas toma consciência da insanidade do personagem quando Carol vê o vulto de um homem através do espelho de seu guarda-roupa, evento que se dá já na metade da película. Jack Torrance é bastante expansivo em suas ações e falas, um verdadeiro debilóide; Carol Ledoux se expressa em um tom onírico, com murmúrios quase sussurantes. Talvez ela se aproxime mais de Travis Bickle quanto ao desenvolvimento da loucura, sutil e imprevisível.
Catherine Deneuve protagoniza um dos papéis mais difíceis da história do cinema. Ao contrário de outros personagens com problemas mentais, como Blanche Dubois, Baby Jane e o próprio Jack Torrance, sentimos pena ao invés de raiva (e também não rimos), mesmo nos atos mais cruéis, isso se dá devido à inocência inextricável que Deneuve incorpora a personagem, acompanhamos tão de perto o seu desequilíbrio gradual, que é quase impossível culpá-la por seus atos, eles se tornam vienais. A sua única companhia é praticamente a própria insanidade, num emaranhado de pesadelos e alucinações, como rachaduras nas paredes que se tornam cada vez maiores, mãos masculinas saindo pelas paredes para tocá-la, e alucinações de abuso frequente de um mesmo homem - Polanski se mostra mais uma vez genial nessas cenas, especialmente ao tirar a trilha sonora no ápice do delírio de Carol, é a loucura em seu estágio mais puro. Ele também faz uso de uma metáfora cruel, colocando um coelho morto que vai se deteriorando à medida que o estado da moça se agrava.
Há também sangue, mas mostrado de uma forma muito mais sutil do que em outros thrillers de horror, como no filme de Kubrick. Essa sutileza não é, porém, menos chocante que os outros atos: o grito de uma cliente a ter 'o bife' de sua unha arrancada e o sangue escorrendo da cabeça de Michael são deliciosamente trágicos. A atriz francesa se mostrou corajosa na escolha de certos papéis, além desse, podemos citar a burguesa entediada que resolve se prostituir no filme "A Bela da Tarde", um dos mais cultuados de Luís Buñuel. Deneuve foi corajosa por interpretar papéis tão complexos em filmes que abordavam temas pouco explorados (ainda hoje os são) na década de 60.
Quatro anos depois Roman Polanski realizaria outro filme de terror não menos assustador, apesar da óbvia vertente fictícia, estrelada por Mia Farrow talvez em seu melhor papel, "O Bebê de Rosemary" - o segundo filme da "Trilogia do Apartamento" ("Repulsa ao Sexo, "O Bebê de Rosemary" e "O Inquilino), chocaria o mundo ao mostrar o nascimento do anticristo. Aspectos encontrados em "Repulsa ao Sexo" são claramente transportados para essa obra, como a tensão crescente e a degradação física e mental da vítima. Mais tarde, o diretor mergulharia em outros projetos bastante diversificados, chegando a abordar o nazismo de uma forma quase poética em um de seus filmes mais recentes, "O Pianista", considerado outra obra-prima do diretor cosmopolita, que ganhou o Oscar de Melhor Direção em 2003, mais que merecido.
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