O filme A Noite Americana, de François Truffaut, é uma obra que narra o dia a dia da produção de um grande filme, estrelado, em grande parte, por atores Hollywoodianos. A homenagem ao Cinema de Hollywood já fica explícito logo depois dos créditos, quando Truffaut dedica o filme às irmãs Dorothy e Lilian Gish, que estrelaram vários filmes essenciais na história do cinema, muitos sob a direção do mestre D. W. Griffith.
É muito interessante acompanhar Truffaut sendo dois diretores ao mesmo tempo: o diretor de A Noite Americana e do filme dentro do filme, chamado Pamela. Acompanhamos a direção não apenas dos atores principais, mas também dos figurantes, dos carros, dos transportes públicos. Vemos o diretor do filme dentro do filme apreciando as belas fotos da personagem de Jacqueline Bisset, que será a protagonista dos dois filmes. Nesse momento, é possível constatar o quanto é importante uma grande estrela para um filme de grande porte, que nos remete ao star system de Hollywood. Entrementes, presenciamos vários conflitos que se desenrolam entre produtores, roteiristas e atores.
Truffaut, um dos diretores peça-chave do movimento Nouvelle Vague, faz uso, em muitos momentos, da câmera na mão para filmar as crises das personagens. Seja o ciúme entre um casal, a luta de egos, a falta de orçamento para a obtenção de um carro perfeito para determinada cena ou uma agenda bastante apertada e restrita, Truffaut não quer fazer um filme aos moldes hollywoodianos. Ele quer homenagear e dissecar Hollywood (mesmo o filme sendo feito na França) nos próprios termos, usando de técnicas cinematográficas do movimento francês para tal objetivo. Como a já supracitada câmera na mão, também vemos outros exemplos diretamente ligados a Nouvelle Vague, como cortes rápidos, planos com ângulos pouco comuns (incomuns dentro, digamos, da ‘tradição’ fílmica) e diálogos sobrepostos.
Truffaut nos leva ao mundo caótico da direção de atores. A personagem de Severine (interpretada genialmente por Valentina Cortese), por exemplo, não consegue lembrar suas falas (o que remete dolorosamente às crises que os diretores Hollywoodianos tinham e tem que lidar com suas estrelas – basta lembrar a dificuldade que Billy Wilder teve em fazer com que Marilyn Monroe decorasse suas falas em Quanto Mais Quente Melhor). Outra atriz quase se recusa a fazer uma cena, pois tem que usar um maiô, e quando finalmente é convencida a fazê-la, o diretor descobre que ela está grávida. Uma crise após a outra. O diretor de Pamela, interpretado pelo próprio Truffaut (o que torna a metalinguagem ainda mais poderosa) sofre de pesadelos por causa das cobranças que encara por todos os lados. Impossível deixar de se lembrar do diretor com bloqueio criativo interpretado por Marcelo Mastroianni em Oito e Meio, obra-prima de Fellini.
A presença de Jaqueline Bisset é captada por Truffaut de uma maneira poderosa - basta se atentar aos poderosos closes na atriz - ao mesmo tempo a endeusando e quebrando os arquétipos de uma estrela de cinema. O diretor lida com a dualidade do que é visto e não visto pelo público. Ao vermos a película, nos tornamos cúmplices de um lugar onde não deveríamos estar, em primeiro lugar. Assistimos a uma película (no caso, o filme de Truffaut), cuidadosamente criada e que encobre as possíveis crises e dificuldades que aconteceram durante o processo de filmagem; mas ao mesmo tempo, estamos frente a frente a uma obra, no caso Pamela, que quer nos mostrar todas essas crises, sem privilégios para o espectador, que é obrigado a sair de sua zona de conforto. A simples magia ao vermos um gatinho bebendo leite em uma bandeja é quebrada ao vermos o quão difícil é fazer o tal gatinho ir na direção certa, em uma série de tomadas intermináveis (assim como na sequência da atriz que esquece as falas).
Foram os diretores franceses da Nouvelle Vague que redescobriram os melodramas de Douglas Sirk e os colocaram em um nível merecido de qualidade. Nada mais natural, então, que o filme que está sendo feito dentro de A Noite Americana seja também um melodrama, que gira em torno de um grande conflito familiar. É Truffaut homenageando, criticando e agradecendo a grande tradição americana de se fazer filmes. Nenhum momento talvez explicite tanto esse impacto do cinema americano sobre Truffaut como a sequência em que ele sonha que está roubando, na calada da noite, pequenos cartazes do filme Cidadão Kane, tendo no máximo 12 ou 13 anos de idade.
A Noite Americana acaba também por se tornar uma espécie de (melo) drama por seu próprio mérito. Aquelas vidas misturadas com as vidas irreais de Pamela formam uma teia complexa dirigida com muita competência por François Truffaut.
A obra do mestre francês é um grande exemplo de cinema moderno que revisita, homenageia e descontrói o cinema clássico. A morte de um personagem do filme é encarada como a morte de um cinema de estúdio, com grandes estrelas e grandes orçamentos. Truffaut pensa em movimentos como a Nouvelle Vague quando narra essa passagem, mas nunca deixa de olhar para trás, ao mesmo tempo em que sempre segue adiante, quebrando barreiras.
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