Steven Spielberg é um diretor que, ao mesmo tempo em que possui milhares de admiradores, carrega o fardo de ser alvo de críticas ferrenhas, principalmente pelo alto sentimentalismo arraigado em suas obras, especialmente nas suas obras mais 'sérias'. O dito inventor do blockbuster, que teve sua carreira catapultada por Tubarão (o primeiro filme do 'gênero'), dedicou a maior parte do seu trabalho, até o começo dos anos 90, em filmes familiares e aventuras extraordinárias, como a trilogia Indiana Jones, E.T. - O Extra-Terrestre e Jurassic Park, esse último foi terminado enquanto ele filmava a sua maior obra-prima: A Lista de Schindler. Diferente de todos esses filmes citados, é acima de tudo, um documento histórico.
A obra nos conta a história de Oskar Schindler. No período nazista, Schindler (o sempre correto Liam Neeson) é um homem de negócios que só pensa em uma coisa: lucrar com a guerra. Para isso, ele reabre uma fábrica na Polônia para produzir esmaltados, e contrata judeus como mão-de-obra quase escrava, devido ao baixíssimo salário. O que ele não tem consciência, de início, é que contratando esses trabalhadores judeus, ele estava salvando-os dos campos de extermínio.
É maravilhoso como Spielberg realiza a transição de Schindler. Na primeira parte do filme, não é tão fácil simpatizar com ele, o diretor nos mostra um homem, sobre todos os aspectos, prático, calculista, aproveitador e egoísta. Não que ele seja desumano, nada disso, apenas um homem que só pensa no seu próprio benefício, em crescer mais e mais, e o ambiente instável do país devido à guerra apenas enaltece esse egocentrismo. O empresário não apóia de forma aberta o nazismo, mas também não o repreende. É por ficar tão alheio a esse aspecto que ele não gera no espectador uma paixão à primeira vista, como faz a maioria dos "heróis".
Além de não se impor em relação ao problema social da época, Schindler chega a defender o maquiavélico Amon Goeth (Ralph Fiennes, divino). Apesar de saber através de seu contador, Itzhak Stern (o sempre maravilhoso Ben Kingsley), sobre os assassinatos aleatórios do comandante nazista, ele tenta justificá-las de alguma maneira e ainda é todo elogio para com Goeth, no fundo, uma maneira de defender seus negócios. E Goeth é uma das personalidades mais assustadoras já mostradas no cinema. Ele matava por prazer, um de seus maiores divertimentos era atirar em judeus trabalhadores da sacada de sua casa, logo depois de acordar. Poldek Pfefferberg, um dos judeus salvos por Schindler, declarou: Quando você via Goeth, você via a morte. É impossível não gelar e ter o coração disparado quando ele está entre os judeus, uma onça faminta em meio a cordeiros indefesos. Sua crueldade é quase inacreditável. Quando Schindler se dá conta das crueldades do 'amigo', ele parte para uma conversa persuasiva, dizendo que ele devia perdoar seus inimigos, ao invés de matá-los, pois o verdadeiro poder reside no perdão.
Essa tentativa de persuasão por parte de Schindler pode ser considerado o divisor de águas em seus objetivos. Ao avistar com sua esposa, ambos montados em imponentes cavalos brancos (o que remete a idéia de poder e distância), o massacre dos judeus, Schindler começa a repensar, aos poucos, seu papel nessa história toda. Quando ele finalmente percebe o que os judeus estão sofrendo, ele abdica de seu sucesso garantido e cria a sua famosa lista, em que abriga judeus em sua fábrica e lá eles ficam protegidos: um judeu que entra na fábrica de Schindler não morre, simples assim. Ao invés de continuar utilizando-os como mão-de-obra, nenhum prego sai da fábrica, ninguém produz nada, ela serve literalmente apenas como um refúgio, e é aí que reside toda a diferença: Schindler poderia ter sido considerado um herói se tivesse abrigado os judeus para proveito próprio? No final, quando ele se sente impotente por pensar que poderia ter salvado um número maior de pessoas se tivesse abdicado ainda mais de seus bens, sentimos que ele está sendo sincero, e não está esperando que alguém diga que o que fez foi o suficiente.
Filmado em preto-e-branco para dar o apropriado tom sombrio, 'A Lista de Schindler' é um espetáculo, não só pela história, que é conduzida magistralmente por Spielberg, mas também pelas extraordinárias atuações (Liam Neeson foi uma escolha acertada, ele passa uma imagem de praticidade empreendora com sensiblidade acolhedora) e realismo. Sentimentalista? Sim, o massacre alemão está lá, nu e cru, mas acredito que essa característica é exalada mais pelo conteúdo em si do que pela mão do diretor. Talvez Spielberg não precisasse ter incluído a menina de vestido rosado (sua aparição no final choca, mas temos a consciência de que não passou de um artifício sentimental totalmente descartável) e mostrado os sobreviventes colocando pedras no túmulo de Schindler (apesar de ser interessante tecnicamente), entretanto, essas passagens mais forçadas não comprometem o filme, não se você já está com os nervos em frangalhos. Uma visão unilateral da guerra? Em sua maior parte sim, entretanto, foi um acerto de Spielberg não mostrar Schindler como uma figura heróica desde o início, o que seria um erro terrível. Sua paulatina transição de puro homem de negócios para defensor dos oprimidos é essencial. Por sua vez, tentar suavizar o lado nazista seria uma estupidez, pois fugiria da proposta principal da obra, que é, sem sombra de dúvida, um dos relatos mais fortes dessa página de horror do século passado.
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