Sendo um filme de Ingmar Bergman, 'Gritos e Sussuros' não é de forma alguma um filme de fácil digestão. Para vê-lo, é preciso que deixemos de lado o nosso costume em ter um filme 'mastigado', em que a trama é bastante clara e os personagens bastante óbvios, da melhor maneira que Hollywood (principalmente a Hollywood de hoje) sabe fazer.
A obra do cineasta é exatamente o oposto dessa obviedade débil encontrada em muitas outras películas, Bergman nos coloca a frente de um profundo reflexo da nossa própria humanidade e dos sentimentos que habitam nossas entranhas.
Mas vamos à trama: Um mulher muito doente é, no período terminal de sua vida, ajudada por suas duas irmãs e também pela criada; à medida que seu estado de saúde piora, algumas memórias do passado dessas três mulheres virão a tona, tornando todo esse período bastante pertubador.
As obras de Bergman são conhecidas por sua profunda densidade psicológica, e aqui não é diferente. Muito pelo contrário, o diretor nos apresenta de um modo bastante complexo os sentimentos mais profundos que atigem essas mulheres. E porque complexo? Não há, como eu escrevi no começo, nada óbvio, nem nas atuações e nem nos diálogos, que por sinal são bem escassos.
Para podermos entender melhor o que se passa na cabeça dessas mulheres, Bergman nos dá alguns flahsbacks de alguns acontecimentos em suas vidas, vemos um pouco mais claramente o que atinge cada irmã: Agnes, a irmã enferma, já sentia ou pelo menos entendia desde cedo alguns sentimentos que entristeciam e até sufocavam a sua mãe, que dedicava uma maior atenção a sua outra filha, Maria. Maria, por sua vez, teve um casamento infeliz e tenta fugir dele ao se relacionar com o médico da família, e por fim, temos a última irmã, Karin, que também passa por um falido relacionamento. Todas essa lembranças são permeadas por um ambiente pesado, rodeado de paredes vermelhas e pelos gritos de profunda dor de Agnes.
Há também uma personagem chave na trama, Anna, a criada, que sempre dedicou um enorme amor à Agnes, ela é a personagem que se mostra mais forte, talvez por ser a única com um propósito um pouco mais claro: cuidar de sua amada patroa e evitar, na medida do possível, o seu sofrimento. A sua força em cuidar da enferma é reforçada pelo fato dela ter perdido sua filha no passado, a sua dor então, se torna mais 'sólida' do que o das irmãs. Já as irmãs estão confusas, cheias de sentimentos adversos: raiva, asco, rancor, paixão reprimida e principalmente desespero: desespero ante à falta de uma razão 'específica' para toda essa angústia; esses são sentimentos que elas foram adquirindo ao longo de suas vidas, provavelmente por inúmeros fatores. Karin não suporta nem ao menos ser tocada por Maria, sua pele e seus nervos estão sensíveis demais para tal gesto.
O que faz essa trama fugir da obviedade é o fato de que os flashback mostrados são apenas algumas peças ínfimas que compõe todo o quebra-cabeça de suas vidas, os maridos são apenas objetos que não fazem nada além de aumentar o sofrimento de suas esposas. Precisamos sentir o que se passa dentro dessas mulheres, as suas angústias e receios, e o que elas buscam afinal. É clara a escolha de Bergman em trabalhar com mulheres, elas conseguem passar com muito mais força para o expectador o quanto a mistura de sentimentos afetam a suas almas, os seus corpos.
E o que essas mulheres querem afinal? Talvez elas queriam simplesmente a felicidade, ou pelo menos alguns momentos felizes. Os gritos de Agnes vão além de sua dor física, são gritos de apelo à suas irmãs, para que elas possam viver juntas, com amor, em harmonia, na simplicidade de um passeio no jardim ou juntas num balanço de parque, ela não deseja muito mais que isso. Porém não há nada mais árduo do que atingir essa simplicidade.
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