Apenas um gênio como Charles Chaplin para desafiar um dos grandes inimigos da humanidade no século XX, Adolf Hitler, com sua obra-prima "O Grande Ditador" (o único de sua filmografia a concorrer ao Oscar de melhor filme, não ganhou por motivos obviamente políticos, houve e sempre haverá muito hipocrisia rodeando o Oscar, um prêmio muito mais burocrático que artístico), um filme histórico, mas nunca datado, seu conteúdo se mantém atual até os dias de hoje, e se manterá ainda por muito tempo.
Após "Tempos Modernos" (1936), Chaplin dá o braço a torcer e abandona os filmes mudos, aposentando também o vagabundo mais famoso do Cinema, Carlitos. "O Grande Ditador" foi produzido ainda antes de a Segunda Guerra Mundial ter começado, e deixou muitos produtores de Hollywood com a pulga atrás da orelha, pois na época os americanos ainda não consideravam Hitler uma ameaça, contudo Chaplin, com toda a sua genialidade, já previa os acontecimentos desastrosos que se seguiriam com a Guerra, e assim, criou um filme trágico e cômico ao mesmo tempo, uma obra ousada que levou à sua expulsão dos Estados Unidos.
O enredo é o seguinte: Um soldado (Chaplin) é ferido e perde parte da memória na batalha que derrotaria seu país, a Tomânia. Depois de sair do hospital, o cadete, que não faz a mínima idéia que seu país está sendo governado sob a mão de ferro do Ditador Adenoid Hynkel (Chaplin), tenta voltar a sua vida normal no gueto judeu onde vive como barbeiro. Mas com o passar do tempo, ele vai descobrir que seu povo está sendo perseguido e que Hynkel quer formar um povo homogêneo, loiro e de olhos azuis (qualquer semelhança com a Alemanha Nazista não é mera coincidência).
A primeira obra falada do diretor tem uma carga trágica tão alta quanto cômica, e esse fator foi explorado pelo gênio também pela primeira vez. Claro que havia drama em "Luzes da Cidade", "O Garoto" e "Tempos Modernos", entretanto, nessas obras o peso cômico e o romance eram o foco principal, apesar de haver críticas sociais em todos eles (principalmente no último citado). Mas "O Grande Ditador" parte para um viés totalmente político, até o tom cômico é carregado por uma natural tristeza que rondava essa época sombria. Porém, Chaplin não deixa o romance de lado, o cadete desmemoriado se apaixona por uma bela e trabalhadeira moça do gueto, Hannah, interpretada por Paulette Goddard, uma mulher de excepcional beleza, que foi mulher de Chaplin até 1940 (os dois se casaram durante as filmagens de "Tempos Modernos"). Charles Chaplin também mantém as gags tão famosas de seus outros filmes, e em uma cena quando está passeando com Hannah pelo gueto, ele se veste como o vagabundo que lhe deu fama, era seu derradeiro adeus a esse personagem.
A película é repleta de cenas extraordinárias. Logo no início, depois do choque do espectador ao ver uma cena de guerra em uma obra chapliniana, o diretor nos delicia com um avião de cabeça para baixo em pleno ar, a criatividade está no fato do avião ter sido filmado como se ele estivesse em sua posição normal, logo, quando o soldado abre a garrafa de água, vemos toda ela 'escorrer pra cima'! A cena mais antológica, sem dúvida, é a dança de Hynkel com um enorme globo terrestre feito de plástico. Obcecado por dominar o mundo, Chaplin consegue passar toda a megalomania do ditador com essa dança, até o momento frustrante onde o globo inesperadamene estoura (como não pensar que Chaplin já estava prevendo a queda do tirano?). As gags do ditador beiram maravilhosamente ao ridículo, e juntamente com o ditador de Bactéria (!!), Benzini Napaloni (referência explícita à Mussolini), realizam uma das cenas mais fantásticas (e engraçadas) quando estão discutindo a invasão de Osterlich e promovem uma guerra de comida, e no barbeiro onde disputam 'o poder' levantando as cadeiras até o limite. Ainda na sala de Hynkel, outra sacada incrível é quando o ditador, com toda a sua mania de grandeza, posa por alguns segundos para um pintor e um escultor, que ficam frustrados toda vez que o tirano deixa a sala.
Os cenários são bastante caprichados, a sala de Hynkel é magnífica, espaçosa e imponente; o gueto também é muito bem construído e os atores coadjuvantes são primorosos, e não podiam ser nada menos que isso, afinal estavam sob a tutela de um dos melhores diretores americanos que já existiu. A fotografia em preto-e-branco realça os tons claros já usados por Chaplin em seus filmes anteriores, optando quase sempre por cenas diurnas.
Os discursos de Hynkel usando um alemão nonsense são de tirar o fôlego de tão hilários, e é interessante o contraste desses discursos sem nexo com o discurso final feito pelo soldado judeu (e ao mesmo tempo, pelo próprio Chaplin); a obra não é muito convincente ao mostrar a facilidade com que o barbeiro judeu consegue penetrar no campo inimigo, mas isso é o de menos, o objetivo do diretor era emocionar com o discurso final, quando Chaplin se despe do personagem e faz um discurso fascinante que bate de frente com as idéias nazistas (e qualquer idéia com uma bandeira totalitária), em defesa da vida, em prol dos seres humanos, com todas as suas diferenças. E é por causa desse discurso que digo que a obra se mantém atualíssima, pois a humanidade ainda não aprendeu a viver com as diferenças, e não aprenderá tão cedo.
Charles Chaplin era mesmo um homem à frente do seu tempo. Pouco anos antes de morrer, em 1972, ele voltou aos Estados Unidos para receber um Oscar Honorário, merecidíssimo, mas o país do Tio Sam sempre estará em dívida com o gênio.
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