O italiano Francesco Rosario Capra, mais conhecido como Frank Capra, fez carreira nos Estados Unidos e é considerado um dos melhores diretores da Era Dourada de Hollywood. Sua carreira pode ser dividida em duas fases: na primeira, realizou comédias como Loura Sedutora, Loucura Americana e Aconteceu Naquela Noite, essa última sendo a primeira vencedora das cinco principais categorias do Oscar (feito repetido apenas por Um Estranho no Ninho e O Silêncio dos Inocentes) que consolidou a carreira de Capra. Entretanto, após receber o conselho de um desconhecido, o diretor passou a fazer filmes 'a serviço de Deus', deixando a sensualidade e a anarquia de lado e partindo para um viés sentimental, com histórias moralistas e personagens com características bem definidas, criando assim as comédias conhecidas como "capraescas". Ele foi o primeiro diretor que foi tão reconhecido quanto seus filmes, um fato inédito, levando multidões aos cinemas, que queriam ver suas obras sem ligar muito para quais atores estariam estrelando-as, apesar de todos serem grandes artistas, como Jean Arthur, Gary Cooper, James Stewart e Lionel Barrymore. Assim como Hitchcock, seus filmes são de fácil identificação, utilizando-se de uma forma infalível, pelo menos para época.
O Galante Mr. Deeds é a película que inaugura essa fase sentimentalista de Capra. Longfellow Deeds (Gary Cooper) é um escritor de poesias de cartão e tocador de tuba que vive tranquilamente em sua cidadezinha de Mandrake Falls. Quando ele recebe uma herança milionária de um tio distante, Deeds vai para Nova York e vira um homem de negócios. O problema é que todo mundo quer tirar algum proveito desse simples e honesto homem, seja tentando administrar seus negócios ou transformando-o em objeto de chacota através da mídia, Louise 'Babe' Bennett (Jean Arthur) faz parte do segundo grupo. Ela é uma jornalista que finge ser uma pobre coitada chamada Mary Dawson para obter informações do novo milionário. Babe tira a sorte grande quando um escritor leva Deeds para uma noitada, o pobre homem se embebeda e sai fazendo 'loucuras' pela cidade, como dar donuts para cavalos e ficar só de cueca, a mídia não perde a chance e cai em cima, distorcendo todos os acontecimentos. A situação piora quando Deeds resolve doar todo o seu dinheiro para os necessitados, ele é taxado como louco pelos aproveitadores (incluindo alguns parentes que alegam ter direito à fortuna) e vai a julgamento, que vai decidir sobre sua sanidade.
Vários aspectos utilizados por Capra em seus filmes posteriores, como Do Mundo Nada Se Leva, A Mulher Faz o Homem e A Felicidade Não Se Compra, podem ser encontrados na obra em questão. Por exemplo, aqui temos um homem que não dá a mínima para o dinheiro, sua indiferença ao saber da notícia que ganhara uma bolada chega a irritar, sua reação (ou a falta dela) é irreal demais. Outro aspecto é o carinho 'sem nada em troca' que os habitantes de Mandrake Falls sentem por Deeds, sem ele ter feito nada grandioso pela cidade. A sua despedida da cidade não poderia ser mais 'capraesca', ao som de "Auld Lang Syne" (também conhecida como "The Song that Nobody Knows"), tão utilizada em outros filmes do italiano, essa canção é um 'golpe baixo' de Capra, por ser tão comovente e marcante. Os aproveitadores, ou o 'eixo do mal', também é constante em suas obras, sejam na forma de parentes, políticos, bancários ou empresários. Em O Galante Mr. Deeds nem os artistas foram poupados, como na cena em que vários escritores se mostram superiores tirando sarro do protagonista por ele escrever 'poemas de cartão'. Entretanto, em meio à todos esses corruptos e pessoas de má índole, alguns acabam se convertendo, deixando o dinheiro e a sede pelo capital de lado e reconhecendo o poder da humildade, dos amigos, da justiça e do amor.
Essa fórmula funciona. Talvez não dê mais certo hoje em dia, mas Capra soube criar um ambiente utópico onde o espectador é capaz de acreditar que aquilo possa realmente acontecer. Capra sabia jogar. Em Do Mundo Nada Se Leva, a inacreditável família de Alice Sycamore (Arthur) é tão surreal que se torna objeto de desejo. É também incômodo para o espectador, que acaba se identificando mais com os loucos por dinheiro do que com o 'eixo relax do bem'. E quem não sente uma pontada de inveja ao ver Martin Vanderhof (Barrymore) e George Bailey (Stewart) rodeados por uma penca de amigos, todos dispostos a ajudá-los nos maiores perrengues? Sem contar o carisma que exala de cada poro desses personagens. É aí que reside a jogada de mestre do diretor, pois queremos ser como esses homens justos e honestos, que não tem nada de extraordinário, pelo contrário, são homens comuns (e ingênuos, dependendo do ponto de vista). É por essa razão que a força da obra de Frank Capra se estende até hoje, afinal, mensagens de esperanças e de uma possível mudança para melhor nunca ficam datadas.
Talvez toda essa estrutura não seria tão convincente se o diretor não contasse com uma gama de atores talentosíssimos. Nesse filme, Jean Arthur está, como sempre, muito bem, uma atriz sempre contida e competente, nunca tentando ser maior do que é. Sua personagem não fica à sombra do protagonista, ela serve como uma força construtiva para ele, apesar de seus métodos nesse filme não serem sempre ortodoxos, como nas outras obras. Gary Cooper está maravilhoso, destaque para a seqüência do julgamento, onde ele se mantém calado na maior parte do tempo, pronunciando apenas um 'não' ao ser perguntado se teria algo a dizer em sua defesa. Seu silêncio, enquanto todos o acusam alegando as mais estapafúrdias afirmações tentando torná-lo uma ignomínia, reforça a ideia principal de Capra, que é a de fazer de seu protagonista um objeto imaculado no meio de tanta sujeira. Entretanto, a defesa de Deeds se torna um tanto forçada, o que acaba afetando um pouco a qualidade do filme, que pode ser considerada uma obra menor se comparada aos filmes seguintes.
Para terminar, um fato curioso é que Mr. Deeds teria uma continuação estrelada também por Cooper e Arthur, que se chamaria "Mr. Deeds Goes To Washington". Mas o diretor acabou optando por fazer uma obra 'completamente diferente', daí surgiu A Mulher faz o Homem ("Mr. Smith Goes to Washington" no título original), com Stewart e Arthur, uma das obras-primas de Frank Capra. Nesse filme, o diretor eleva o personagem de Stewart a um patamar ainda mais incorruptível, como se fosse uma 'evolução' de Deeds, a fórmula funciona tão bem que o seu discurso final clamando por justiça é um dos momentos mais marcantes do cinema.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário