Freedom!
Assim como Os Imperdoáveis, grande obra de Clint Eastwood que tentou ressuscitar sem êxito o gênero faroeste, Coração Valente de Mel Gibson foi estrelado pelo próprio diretor e levou as estatuetas de Melhor Filme e Melhor Diretor, sem contar os prêmios técnicos. Tão quanto o faroeste de Eastwood, esse filme provou a grande habilidade de Gibson na direção (ele já tinha dirigido um filme, mas sem grande destaque), que é nada menos que uma direção impecável, além de contar uma história épica com uma paixão latente.
O enredo nos conta a saga heróica de William Wallace (Gibson), um escocês que tem a mulher morta por soldados ingleses, em um tempo onde a Escócia era dominada pela Inglaterra, mais precisamente no século XIII. Depois da tragédia, Wallace reúne a população maltrapilha escocesa, mas com sede de liberdade para lutar contra a Inglaterra e libertar o país, o problema é que, além de ter que enfrentar o exército inglês, Wallace terá que encarar os nobres escoceses que apóiam a Inglaterra em troca de grandes posses de terras, nobres esses liderados por Robert Bruce (Angus MacFadyen), que está em dúvida quanto a sua posição, se continua a apoiar o impiedoso rei inglês Eduardo I (Patrick McGoohan) ou se apóia a causa do guerreiro escocês.
O filme distorce alguns fatos históricos, como a fictícia relação entre William Wallace e Isabel (Sophie Marceau), Princesa da França, e a morte do rei Eduardo, que na realidade veio a falecer apenas três anos depois da morte de Wallace. Outro fato curioso é que historiadores acreditam que por Wallace ser um homem culto que dominava várias línguas, ele e sua mulher, Murron MacClannough (Catherine McCormack), teriam sido aristocratas locais e não plebeus como retratados no filme, porém essas mudanças não prejudicam o enredo, pelo contrário, apenas o enriquecem, afinal, um herói plebeu que luta por liberdade é muito mais interessante que um patrício. Sendo do povo, a figura se torna mítica e mais digna de admiração, além do aspecto visual sujo e esfarrapado que enriquece o mito. Ainda há a inspiradora cena quando o guerreiro impressiona a princesa ao mostrar seus talentos lingüísticos, a seqüência com um sorrisinho sutil da princesa ao notar o nível de instrução de Wallace caiu como uma luva.
A caracterização de Mel Gibson está maravilhosa. Seu porte másculo, cabelos longos e secos e roupas feitas de pele de animais o tornam um herói homérico, e seu rosto pintado de azul durante as batalhas épicas em campo aberto o transformou em uma das imagens mais marcantes do Cinema da década de 90, o Oscar de Melhor Maquiagem foi merecido. A relação amorosa entre ele e a princesa pode parecer improvável (talvez pela rapidez com que ela se dá), mas essa relação é convincente devido ao grande fascínio que Wallace exerce em Isabel, uma figura que contrapõe a de seu marido frágil, com trejeitos afeminados e sem nenhum poder de decisão ou liderança.
Outro fator interessante é a dicotomia entre o líder do povo escocês e o líder dos nobres que aguardam a tomada do poder sob a tutela inglesa. Em um momento de traição, quando se dá conta do grande desejo de Wallace pela liberdade do seu país e da sua ânsia em debelar o domínio inglês, Bruce diz ao pai: Terras, Poder, Nada!, a sua inveja e conseqüente transformação de almofadinha para um herói que comandou o exército escocês contra a Inglaterra após a morte de William é muito bem desenvolvida, sendo apoiada no valor da liberdade e o quanto ela representa, e a decrepitude de seu pai serve como metáfora para essa nobreza escocesa em decadência. Robert Bruce é primeiramente um homem destoante (por causa de suas dúvidas) das idéias de Wallace (como já era de se esperar), mas que acaba cedendo devido a sua reflexão introspectiva baseada na revolução iminente.
As lutas são outro ponto forte da obra. Eu particularmente sempre fiquei impressionado com a guerra em campo aberto que era travada antigamente, na cara e na coragem, o corpo praticamente desprovido de proteção em prol de um bem maior, a morte significava glória, orgulho, esperança, futuro e preocupação com as gerações seguintes. Nada de bombas ou máquinas que só exaltam a covardia humana. E essas batalhas não devem nada as de outros grandes épicos, como Senhor dos Anéis por exemplo, as seqüências de lutas são criadas com o mínimo de interferência da computação gráfica, dando um realismo extraordinário, além de muito sangue (mas nada comparado com o que o diretor viria a fazer em A Paixão de Cristo).
As atuações estão corretas, nada de extraordinário por parte de nenhum personagem, entretanto, Mel Gibson consegue transmitir a paixão de Wallace pela liberdade de seu país sem afetações e prova ser um bom ator, a impressão que se tem é que o próprio Gibson era de origem escocesa, tamanha sincronia entre ele e seu personagem, o diretor não faz um filme gratuito, há uma cumplicidade intríseca entre ator e personagem que não se vê a todo momento. Os diálogos são razoavelmente inspirados e tenta escapar ao máximo de frases de efeito e chavões, apesar de deslizar em alguns momentos e pecando pela falta de profundidade. A trilha sonora, apoiada no som da gaita de fole irlandesa, é uma das maiores qualidades do filme, e também uma das mais importantes da década retrasada, junto com a trilha de Jurassic Park e Titanic. Um épico grandioso sobre a liberdade que deve ser visto ao menos uma vez.
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