A inteligência humana como armadilha em si mesma.
Harrison Ford, apesar de não ser um ator genial e de não ter feito nada muito relevante para o Cinema nos últimos vintes anos (com exceção do bom Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal), tem no currículo uma lista de filmes invejável para muitos colegas de trabalho. Desde sua tímida (mas importante) participação na obra juvenil e salvadora de George Lucas, Loucuras de Verão, passando pela primeira trilogia de Star Wars como o inesquecível Han Solo e claro, se tornando um dos heróis mais queridos de todos os tempos na trilogia Indiana Jones, o charmoso ator sempre se mostrou bastante competente e carismático. Esses personagens nunca requereram um brilhantismo da parte de Ford, por outro lado é difícil imaginarmos outro ator em seus papéis mais importantes. Já o diretor Ridley Scott tem uma carreira irregular, não faz nem três anos que ele nos entregou o ótimo O Gângster, e desde a década de 70 ele vem oscilando entre o ótimo e o razoável, com filmes como Alien, O Oitavo Passageiro, Thelma e Louise, Gladiador e Hannibal, sempre se preocupando mais com a estética impecável do que com a densidade dos personagens e dos diálogos, mas nesse caso, e principalmente em Blade Runner - O Caçador de Andróides, o resultado é bastante positivo.
Los Angeles, 2019. A empresa multimilionária Tyrell Corporation criou seres idênticos aos seres humanos conhecidos como Replicantes com o intuito de usá-los como escravos na exploração e colonização de colônias extraterrestres. Os Replicantes, após uma rebelião da geração NEXUS 6 (a mais avançada em inteligência), são considerados ilegais na Terra e precisam ser exterminados. É então que entra Rick Deckard (Ford), um policial caçador de andróides que está doido para se aposentar, mas antes disso ele vai ter que liquidar quatro replicantes fugitivos, além de lidar com seus sentimentos envolvendo a sexy e robótica Rachael (Sean Young), uma andróide que, diferente dos outros, possui lembranças de toda uma vida incutidas em seu cérebro e nem ao menos sabe que é uma replicante. Enquanto isso, o andróide Roy Batty (Rutger Hayer) sai em busca de seu criador para tentar prolongar a curta vida de um replicante, que é de apenas quatro anos.
Bem diferente da harmônica e estável cidade futurista de Hill Valley concebida por Robert Zemeckis em De Volta para o Futuro 2, a Los Angeles de Scott é uma cidade cosmopolita, hiperpopulosa e genialmente dominada pela cultura oriental. A cidade multiétnica (um verdadeiro formigueiro humano) é repleta de arranha-céus que, vistos de cima dão a impressão de um lugar em guerra devido ao fogo jorrando do topo dos prédios gigantescos, e naves espaciais que propagandeiam numa voz monótona as colônias extraterrestres como nova moradia humana, além do mercado negro e das barracas de comida espalhados pela metrópole. A massa populacional desesperançosa - a classe mais baixa que não tem como arcar com um novo e irresistível lar - vaga em meio a sujeira nas ruas, propagandas da Coca Cola e um outdoor virtual em um dos aranhas-céus que mostra uma oriental de sorriso maroto, uma das imagens mais marcantes da obra.
Ridley Scott é simplesmente brilhante ao criar essa grande salada cultural com predomínio oriental, afinal, países como a China e a Índia estão cada vez mais imponentes nesse cenário globalizado em que vivemos. Se Metrópolis de Fritz Lang ainda causa certo impacto e espanto, Blade Runner, que tem quase 30 anos, poderia ter sido lançado ontem ou daqui a dez anos, devido à perfeita construção de um futuro sombrio e completamente possível, e também um tanto provocativo, já que Scott nunca nos mostra a luz do dia e a garoa é constante, dando também ao filme um tom apropriadamente noir. É uma obra que dificilmente irá envelhecer, a não ser se chegarmos à decadência social retratada pelo diretor e formos ainda mais além, o que honestamente eu não creio ser tão difícil de acontecer. Se o diretor não cria personagens aparentemente profundos, são nesses cenários impecáveis que residem a maior reflexão e profundidade do filme, cabe ao espectador aproveitá-los ao máximo. E os personagens acabam sendo subjugados por essa Los Angeles de 2019, resultado da ganância humana sem limites que propicia uma cidade que incrivelmente se transforma logo de cara no personagem principal. Scott ainda faz uso de uma bela trilha sonora de aspecto oitentista que dá o apropriado tom retrô.
Mas voltando aos personagens, Harrison Ford faz de Deckard um homem vulnerável (como todos os outros que interpretou) e mesmo sendo competente em seu trabalho, ele se mostra um tanto confuso nesse ambiente inóspito de incertezas, principalmente depois de conhecer Rachael, quando a própria origem do caçador é posta em xeque. Ora, se Rachel não sabia que era uma replicante (e seu porte robótico, porém sensualmente humano é essencial para humanizá-la, principalmente em uma cena quando se desfaz do coque e mostra os belos cachos), quem garante que Deckard também não seja? Mais um ponto para o diretor, que metaforiza a gradual perda de identidade do ser humano ao mesmo tempo em que expõe o individualismo obscuro e destrutivo quando mostra a criação de brinquedos humanóides do engenheiro J.F. Sebastian, um homem que trabalha para a Tyrel Corporation e sofre da sinistra Síndrome de Matusalém, uma espécie de envelhecimento precoce. Obviamente essa doença tão rara não está na obra por acaso, em uma época em que a Ciência promete uma vida bem mais longa (alguns até falam em viver eternamente como um ser humano adulto), é no mínimo irônico vermos alguém definhar tão rapidamente nesse futuro nada promissor. A visão do roteirista Philip K. Dick é cruelmente pessimista.
Pris (Daryl Hannah), outra andróide que está na mira de Decakard, é a personagem mais rasa do filme apesar da sua imagem física peculiar que a torna uma figura quase anárquica. Entretanto, se internamentwe ela é pouco explorada, a personagem serve como ponte para essas questões existenciais levantadas por Scott e para nos apresentar Batty, que não se conforma com a ínfima duração de sua vida. Mas o inconformismo de Batty não seria o nosso inconformismo diante da morte? No fim, Roy Batty está longe de ser um vilão, pelo menos não mais do que nós mesmos.
Contando com uma direção de arte detalhista e estupenda, e é possível notar esse detalhismo na cena que engloba as sinistras criações de Sebastian, por exemplo, uma direção notável e eficiente de Ridley Scott dentro de seu maravilhoso mundo futurista descrente e boa atuações (claro que a versão restaurada ajudou a deixar o filme ainda mais atual, deixando o 'personagem' principal mais imponente), Blade Runner é um dos melhores exemplares de ficção-científica já realizados, e não acho heresia colocá-lo no mesmo patamar de 2001: Uma Odisséia no Espaço do mestre Kubrick, tamanha sua importância para o Cinema, tanto na estética quanto no conteúdo, que nesse caso, são inseparáveis.
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