Lars Von Trier é o tipo de fazedor de arte que ou possui amantes fascinados por seus filmes ou é odiado fervorosamente, um artista sem meio-termo. O dinamarquês foi um dos fundadores de um dos movimentos mais importantes dos últimos vinte anos dentro do Cinema, o Dogma 95. Resumidamente, esse movimento consiste em ir contra a maré das produções enlatadas norte-americanas, dando-lhes o máximo de realismo. Para isso, os filmes seriam filmados em locações reais, com objetos e cenários já existentes, nada de filmes de época (evitando assim obras que se enquadrariam em algum gênero específico), usar câmeras de mão e ainda não contar com nenhum tipo de música, enfim, uma maneira de tentar se esquivar do estilo comercial (e muitas vezes descerebrado) de Hollywood. O movimento não foi tão bem-sucedido quanto o neo-realismo italiano ou o nouvelle vauge (a época em que vivemos é a maior responsável pela marginalidade desse tipo de reação contra o produto comercial e superficial para as massas), mas não deixou de criar obras-primas, como Festa de Família e Dogville, que no futuro serão indubitavelmente vistas como um marco da última década do século XX e da primeira do século XXI. A maior obra do diretor dentro do Dogma 95 é o já citado Dogville, mas seu trabalho não se restringe apenas a esse estilo, Dançando no Escuro (outra película arrebatadora) e Anticristo, apesar de ousados e de não seguirem os padrões convencionais da indústria cinematográfica americana, não se encaixam dentro do movimento.
Anticristo conta a história de um casal que perde o filho num trágico acidente doméstico. A mulher (não sabemos o nome da esposa e nem do marido, e nesse caso esse fator é totalmente irrelevante) entra em um estado de choque e depressão profunda, e seu marido, que é analista, apesar da profunda tristeza, toma as rédeas da situação e começa a tratar da esposa, levando-a para uma floresta, num lugar chamado Éden, para que ela possa se livrar dos medos aparentemente indescritíveis que a atormenta. A película é dividida em Prólogo, Sofrimento, Dor (O Caos Reina), Desespero, Os Três Mendigos e Epílogo.
Prólogo
A cena inicial é uma das mais espetaculares já vistas nos últimos anos. Lars Von Trier conduz o acidente fatal da criança de uma maneira apoteótica. Em câmera lenta e fazendo usa de uma fotografia triste, misturando o preto e branco com um leve tom esverdeado, o diretor alterna uma cena de sexo do casal com os passos da criança até o parapeito da janela e o inevitável acidente. Talvez o uso da plangente ária Lascia ch’Io Pianga, de Haendel e o pênis entrando na vagina sendo mostrado explicitamente tenham sido uma maneira de glorificar a seqüência mais do que o necessário e podem ser considerados recursos clichês, principalmente o uso da trilha, pois para o sexo explícito há uma justificativa sempre bastante coerente ao longo da projeção, o sexo nunca (nunca mesmo) é gratuito.
Sofrimento
Depois dessa seqüência pouco ordinária comparada com o que estamos acostumados a ver, acompanhamos o sofrimento inimaginável da mulher, que fica nada menos que um mês no hospital, tamanho seu abatimento. E nesse aspecto a atuação de Charlotte Gainsbourg é essencial (e a maquiagem também ajuda muito no processo). Ela transmite genialmente a amargura de uma mãe que perde o filho, talvez a maior dor que um ser humano precisa suportar, e nos entrega uma das atuações mais sinceras já vistas.
Para tentar aplacar a dor e encobrir o sentimento de culpa, a mulher começa a atacar verbalmente seu marido, culpando-o por estar sempre distante e trazendo a tona um passado sofrido provocado em parte por ela mesma, ou talvez até irreal e exagerado. O marido, Willem Dafoe (também ótimo), faz seu papel de analista tentando organizar uma lista de medos da esposa para ajudá-la a erradicá-los. Um dos problemas desse processo reside na inevitável mistura de marido e analista, assim a mulher usa o sexo como forma de abrandar a dor pelo menos por alguns minutos, mas nesse caso não é apenas o sexo pelo sexo, a primeira vista pode aparecer, mas na verdade o casal sempre faz amor, aqui a atração carnal não é uma forma de libertinagem. O marido, mais racional, tenta evitar essa mistura, mas muitas vezes não é bem-sucedido, entretanto, depois de algumas tentativas, o medo maior da esposa é exposto, e assim eles partem para uma floresta onde ela e o filho passaram o último verão, num lugar chamado Éden, que segundo ela, é onde reside um de seus maiores medos. Em Éden, o marido avista, como num sonho, um veado carregando um filhote morto na parte traseira, essa é apenas uma das muitas passagens simbólicas - e muito importantes - da obra.
Dor (O Caos Reina)
Essa provavelmente é a parte mais esclarecedora quanto ao objetivo do filme, mas ao mesmo tempo repleta de múltiplas interpretações (assim como o Desespero e o Prólogo). Enquanto o casal está indo para a floresta, o homem faz uma sessão terapêutica para que a mulher possa imaginar já estando em Éden, caminhado pela mata, atravessando a ponte, deitando na grama e fazendo parte dela, em uma completa imersão. Trier é genial em conceber o pensamento da esposa. Em um universo mental de atmosfera onírica, sorumbática e em slow-motion, ele cria uma espécie de pintura mental, algo difícil de descrever, apenas assistindo o filme para poder saborear esse espetáculo visual, um verdadeiro trabalho de mestre.
Quando chegam a Éden, o analista continua seu trabalho de cura e descobre mais sobre sua mulher, como por exemplo, o assunto de sua tese inacabada. A tese é sobre o maltrato contra as mulheres feito pelos homens em séculos passados, mais especificamente na Era Medieval, tempos em que o sexo feminino era visto como inferior e de utilidade apenas reprodutora, no auge da Caça às Bruxas.
Acredito que essa tese é a base de todo o filme. A esposa tem medo da natureza (leia-se: florestas, grama, animais) por temer a natureza humana, por acreditar que somos essencialmente maus, e isso explicaria o sofrimento daquelas mulheres medievais. Porém, mais que isso, ela parte do princípio lógico (dentro da sua concepção, é claro) que essas próprias mulheres também faziam (e fazem) parte desse mal indissociável e intríseco ao ser humano, logo elas mereciam tal sofrimento. O Éden então não é um nome aleatório, mas sim uma referência clara ao Jardim do Éden da Bíblia, a obviedade é perdoável. A história todos conhecem, segundo as Escrituras Sagradas, Eva foi a causadora de todo o mal do mundo por ter comido a maçã proibida. Na mitologia grega, Pandora foi também a causa de todos os males dos homens ao abrir a caixa proibida e libertar todo o tipo de sentimentos, tanto bons quanto ruins. Logo, a mulher se sentir extremamente culpada pela morte do filho e mais tarde retirar o próprio clitóris abstendo-se do prazer carnal (além de se julgar verbalmente falsa em todos os sentidos) estão diretamente ligados a esse círculo que envolve o Pecado Original e que condena covardemente todos os seres humanos, o que também nós dá base para explicar o título do filme, já que Jesus Cristo é dito como a perfeição e o salvador dos pecadores, a representação do Homem mas ao mesmo tempo o oposto dele, que já nasce pecador.
O marido, apesar de sempre mais racional (e esse fator pode ser justificado como uma representação da soberania masculina sobre a mulher por tantos séculos), não consegue manter a razão todo o tempo. A terceira parte é encerrada sabiamente quando o analista vê uma raposa se mutilando e dizendo O Caos reina. Essa automutilação seria uma representação da destruição humana (aí entra de novo o Jardim do Éden, Eva, o Pecado, os males etc.) e também a representação do suicídio, que vai contra a natureza humana segundo o Darwinismo, em que os seres lutam a todo tempo contra a morte, logo não é natural ir ao encontro dela. Trier peca em apenas dar voz ao animal, tirando uma parte do lirismo que envolve a obra e criando um momento tristemente cômico.
Desespero
Definitivamente essa é a parte mais concreta do filme, apesar de também conter interpretações pessoais. A mulher entra num completo desespero paranóico, insistindo que seu marido vai abandoná-la. Aqui a atmosfera onírica está mais presente do que nunca, é o sonho se transformando em pesadelo, e serve como isolamento social. Só que esse isolamento não trata de um tema individual, ele parte do micro para o macrocosmo das relações humanas (com outros humanos e com a natureza, logo, com o todo), o que poderia explicar a aparição ilusória de outras pessoas na floresta, apesar de muitas vezes termos a impressão que o casal está num mundo a parte. Uma forma genial que o diretor encontrou de transmitir a universalidade através da individualidade. O Um é o Todo, apesar das possíveis implicações particulares dentro de um mundo de ações e reações.
Na sua loucura, a mulher enfia uma furadeira no marido para impedi-lo de 'escapar', o machuca intensamente no saco escrotal e depois o masturba, jorrando sangue e deixando-o desacordado. Seria essa uma forma de evitar a perpetuação humana e consequentemente o sofrimento e o Pecado Intríseco? Quando volta a si, o analista se esconde na toca da raposa, mas é denunciado pelo barulho de um corvo. Depois de tentar matá-lo, ele é achado pela mulher e acaba matando a esposa estrangulada e depois queimando seu corpo.
Os Três Mendigos
Confesso que a penúltima parte ainda é algo difícil de interpretação. Mas acredito que eles possam ser representados pelo Veado (sofrimento causado pela perda do filhote), pela Raposa (auto flagelamento - suicídio -, um dos triunfos do Caos) e pelo Corvo, que representaria a morte, logo, o fim e o começo (a morte da mulher poderia significar o renascimento do Homem, a morte da pecadora). Alguns alegam que podem representar a Santa Trindade: O Pai, O Filho e o Espírito Santo, e logo, a destruição ou a descrença no cristianismo. Cabe ao espectador interpretar ao seu modo, e o filme é felizardo nesse ponto, afinal, interpretações individuais abrem um leque muito maior de discussão do que uma interpretação universal (apesar da obra ser mais restrita em alguns aspectos, como o caso envolvendo a tese da mulher e suas possíveis interpretações).
Prólogo
O prólogo é rápido e certeiro. Após cremar a esposa, o marido trilha o caminho para sair da floresta e voltar ao 'mundo real', come algumas frutas (o começo de um processo de volta a realidade e voltar a se intregrar na sociedade, um homem de bem) e tem a visão de centenas de pessoas subindo pelas encostas da floresta, outra ilusão que volta ao aspecto macrocósmico da obra e que põe o casal como seres representativos do mundo. As visões do Homem o colocam perto dos delírios da mulher, mas nunca no mesmo patamar, sendo ele sempre 'superior'.
Com certeza eu não analisei tudo o que a película aborda, seria preciso revê-la algumas outras vezes e mesmo assim algo passaria despercebido, interpretações poderiam ser mudadas ou algo a mais acrescentado. É nisso que reside a grandiosidade da obra idiossincrática de Lars Von Trier. Um prato cheio tanto para quem o ama, quanto para quem o odeia, esse último grupo pode ver a película sob uma ótica superficial e achá-la prepotente e pseudo-intelectual.
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