Desde o lançamento do “Sexto Sentido” que parte da crítica e o público vem se dividindo em relação ao cineasta M. Night Shyamalan. Todos esperam que ele repita a mesma fórmula que rendeu milhões de dólares nas bilheterias. Shyamalan não cederá a essa pressão. Ele possui muitas histórias ecléticas para contar e não será por convenção popular que mudará seu estilo. A Dama na Água (Lady in the Water, 2006), que chega ao circuito hoje, comprova mais uma vez a excelência de seu autor. O filme é com certeza um dos melhores do ano.
A história começa com uma fábula. Usando imagens animadas como se fossem pinturas em uma caverna, Shyamalan cria o pilar de sustentação de um conto de fadas num complexo de apartamentos em Filadélfia chamado de The Cove (se acrescentarmos um n no final torna-se coven, grupo de pessoas que seguem a Wicca). Depois dessa introdução conhecemos Cleveland Heep, uma espécie de zelador do complexo. Alguém tem usado a piscina à noite e Cleveland está determinado a descobrir quem é. Ele encontra Story, uma narf (uma ninfa da água), membro de uma civilização aquática conhecida como Blue World. Segundo a fábula de séculos atrás, narfs e humanos tinham uma conexão, mas perderam contato. Agora as narfs voltaram para salvar a humanidade de sua autodestruição. Para isso a narf precisa encontrar um escritor que esta sofrendo um bloqueio criativo. Desse encontro surgirão mudanças que levarão a paz mundial. Story encontra o escritor, mas para que os eventos aconteçam de forma positiva, Story precisa retornar a Blue World nas asas de uma águia gigante.
Os scrunts são bestas caninas de pele coberta de grama, que os ajuda a se camuflarem sem que os humanos percebam. Essas criaturas só existem para impedir que as narfs retornem ao seu mundo. Existem leis que previnem isso, mas tem um scrunt raivoso que não quer deixar Story retornar a Blue World. Scrunts podem ser impedidos por tartutics, criaturas que vivem nas árvores e parecem macacos. Tudo isso é explicado para Cleveland pela mãe de Young-Soon Choi, suas vizinhas. Inteligentemente, todas essas informações e outras mais são contadas pela mãe de Young-Soon Choi conforme vão surgindo dúvidas de como agir por parte de Cleveland. Shyamalan cria um verdadeiro quebra-cabeças que a cada cena uma nova peça é colocada. A trama consiste nas tentativas de Cleveland ajudar Story em seu objetivo. Ele acaba convocando vários auxiliares para sua tarefa. Essas pessoas também terão papel determinante na narrativa. Descobrir quem é quem é mais uma entre as ótimas sacadas de Shyamalan. Contar mais seria estragar as surpresas do roteiro.
Shyamalan mantém as coisas claras e concisas. Talvez seja seu filme mais simples. O suspense é genuíno e os sustos acontecem sem os habituais clichês. E pela primeira vez ele acrescenta bastante humor na história. Todos os elementos shyamalanianos estão aqui. Temas como fé, propósito, auto-conhecimento, espiritualidade e liderança. Até seus habituais personagens e suas características se fazem presentes. As figuras dramáticas de Shyamalan sempre recebem uma inerente responsabilidade de serem líderes no mundo. Seus deveres pesam e os assustam. Percebemos isso em Story. Ela questiona porque foi a escolhida para a ser a madame narf, a líder e porta-voz de seu povo. Ela não se acha a mais inteligente ou corajosa. Ela avança em seu caminho com apreensão e dúvida. Isso acaba dando uma dimensão de merecimento, importância e emoção no filme. Outra particularidade em seus filmes é o personagem ferido que é arrastado para enfrentar seus medos, superar suas feridas profundas e cumprir seu destino. Interessante que até a campanha de marketing da produção foi pensada. Eles deram muito mais atenção a bela narf. Na verdade a narrativa é sobre a luta de Cleveland em acreditar que ele esta vivendo um conto de fadas, sua tentativa frenética em se comportar com responsabilidade e sua realização que tudo isso o está levando para resolver um pesado sofrimento de seu passado.
No elenco temos o fantástico Paul Giamatti no papel de Cleveland Heep. Ele cresce a cada novo personagem. Seus olhos têm uma enorme expressividade. Todas as nuances necessárias estão lá. É de se imaginar quantos Oscar já teria ganho, se tivesse os padrões de beleza exigidos por Hollywood. Bryce Dallas Howard interpreta Story. Percebemos uma atriz em ascensão. Ela já tinha nos apaixonado em “A Vila” interpretando uma cega. Aqui ela tem uma tarefa ainda mais complicada. Por se tratar de um personagem misterioso, sua performance se concentra no olhar e em poucos gestos. Seu lindo rosto angular se encaixa com perfeição. Os coadjuvantes também cumprem com extrema habilidade seus papéis. Com destaque para Bob Balaban interpretando o crítico de cinema Mr. Faber. Fica claro que o personagem é uma provocação aos críticos que detonaram “A Vila”. Independente da afronta, realmente existe gente como Faber, que vive enamorado com seu intelecto e se julga o dono da verdade. Isso já seria motivo suficiente para incomodar os críticos. Mas Shyamalan deferiu o golpe de misericórdia quando se escalou como o escritor visionário que será o catalisador da salvação global. A crítica especializada norte-americana não perdoou e massacrou como pode o filme.
Polêmicas a parte, é inquestionável o talento de Shyamalan como diretor. Existem muito poucos cineastas (Steven Spielberg e Martin Scorsese entre eles) que a cada tomada consegue colocar a câmera no lugar mais interessante para o olhar do espectador. Aqui, ele encontra formas encantadoras de filmar um velho e pouco atraente prédio velho de apartamentos. Temos como exemplo, Cleveland recolhendo o lixo em três andares ou mesmo quando ele extermina um inseto sem mostrá-lo. Sua assinatura no suspense tem uma inclinação especial para cenas noturnas sombrias. Ele tem extrema habilidade em usar imagens sutis para criar cenas aterrorizantes, sem bombardear o público com personagens CGI. O trabalho de fotografia foi realizado pelo extraordinário Christopher Doyle.
O filme foi lançado erradamente como um típico produto do verão e não fez o sucesso sonhado nas bilheterias norte-americanas. As produções que costumam arrecadar milhões de dólares apresentam elenco estelar, fórmulas, romance, cenas nababescas de ação e efeitos especiais de última geração. Esses elementos você não encontrará em A Dama na Água. O resultado é um filme artístico vestido de conto de fadas. Como em seus trabalhos anteriores o que importa é a viagem e não o destino. E a jornada aqui é coberta de graciosidade e muita imaginação. Mas para se entreter com o filme é necessário deixar o cinismo na entrada do cinema e não perder tempo questionando o roteiro. Feito isso, o público será recompensado com uma experiência encantadora e mística.
É a mesma fé cega que impulsiona os personagens de Shyamalan. A história é uma fábula criada por ele para contar para suas filhas antes delas dormirem. E vale lembrar que fábulas não possuem comprometimento com a realidade. Pelo menos a mensagem é bastante real. Percebemos isso na piscina em formato de coração. Shyamalan quer nos dizer que as verdadeiras mudanças surgem do coração e na nossa habilidade de amarmos uns aos outros. Ao mesmo tempo ele mostra reportagens na TV sobre o Iraque, nos lembrando de como o mundo está violento. Ele acredita que todos têm um papel nessa vida, mesmo que não saibamos qual seja. E talvez nunca percebamos a influência de nossos atos de amor e carinho.
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