Muitas vezes o terror possui caráter eminentemente estético, a exemplo de obras do mestre Dario Argento, como Suspiria, ou ainda no caleidoscópio lisérgico de Sergio Martino em Todas as Cores da Escuridão. Aqui, em Nós, o horror pelo horror se justifica a cada plano, a cada desdobramento, e Jordan Peele transmite sua mensagem - obscura pra uns, tão cristalina pra outros. Os primeiros minutos nos brindam com uma mixórdia inebriante, e ao mesmo tempo sublime, de Funhouse e A Dama de Shangai. A atuação da Lupita Nyong'o é qualquer coisa - sem aquele apelo quase freudiano à uma protagonista exageradamente sexualizada.
O horror, deveras, somo nós, mas não por conta de uma crise de identidade - ou ainda, por conta de uma crítica direta à Redes Sociais, e sim por conta do fantasma que nós tornamos invisível no dia a dia: o racismo - ou melhor, a abnegação do racismo estrutural galopante que, muitas vezes, é mais "confortável" ignorar. Talvez muitos tentem "pensar além" do que o artista almeja, porém, se conhecido o contexto, a mensagem se torna evidente.
De referências gritantes, como os macacões que se assemelham aos uniformes alaranjados de presidiários estadunidenses (e das constantes falas de "desacorrentamento") à simbologia do Br'er Rabbit - um personagem do folclore africano, trazido pelos escravos para o Novo Mundo -, Jordan Peele sustenta seu argumento de maneira sólida com a História da Escravidão nos EUA, seguido do período macabro da Segregação. O Br'er Rabbit é comum entre povos oprimidos, onde a sua figura representa a ideia de que uma força, ainda que fraca, pequena, porém engenhosa, pode derrotar a força bruta. Nas fábulas, o Br'er Rabbit constantemente "engana" o Urso, a Raposa e o Lobo (A Disney adapta a história em A Canção do Sul; e no Brasil ele ficou conhecido nos quadrinhos como o Compadre Coelho).
Jordan Peele usa o terror de maneira perspicaz para, digamos, refrescar a memória do espectador acerca do impacto do período de escravidão estadunidense, seguido da Segregação, a qual durou até 1964 - mas com significantes efeitos colaterais vistos até hoje, demonstrado com uma leveza invejável pela piada do Esqueceram de Mim, ao torná-la uma "não-referência" à filha, que provavelmente consumiu outros elementos da cultura pop, diferentemente do pai, praticamente uma caricatura do homem medíocre ocidental. A constante sugestão do personagem Gabe em seguir o American Dream - qual seja uma bela família, carro, casa de veraneio e um barco, enriquecido pela piada genial do "isso é coisa de branco" - nos mostra que a representatividade não pode ser meramente visual: precisa ser ideológica, de raiz. Curiosamente, ele não se reconhece enquanto "reflexo".
A distopia criada por Peele consegue esconder muito bem a real mensagem do diretor - ainda mais com o plot twist do final, mas, na minha opinião, havia algo maior. Da concepção dos clones para manipular os seres "de cima", que nos mostra uma clara referência à escravidão, posto que praticamente uma nação inteira fora erguida com sangue e suor dos escravos, tal qual as marionetes sugeridas por Peele, ao fim do experimento, onde aqueles seres eram, agora, livres, entretanto não circulavam nos mesmos lugares que as suas cópias, em uma direta analogia ao período da Segregação; faziam tudo que os irmãos de cima faziam, porém "no lugar específico". Numa sociedade completamente apática, é surpreendentemente necessário contar, mais uma vez, a História - seja pelos livros, seja pela Arte.
E, por fim, creio que o elemento mais rico deste filme é a metalinguagem incômoda usada por Peele (universal, diga-se de passagem, pois, ainda que se trate da história estadunidense, é inegável que países como o nosso sofrem com efeitos colaterais semelhantes, trilhado pela nossa própria História), onde muitos de nós, privilegiados socialmente, preferimos crer que racismo não é "algo tão grave assim"; que não existem motivos para tentar "reinserir" linhagens inteiras exterminadas brutalmente por um sistema ignorante; preferimos, muitas vezes, achar graça de situações esdrúxulas. Preferimos acreditar que esta é uma obra que fala sobre a sociedade atual (não deixa de sê-lo), que fala sobre a duplicidade da vida real versus a vida virtual (pois é isso que as redes sociais nos fazem crer, aos estabelecer seus usuários como produtos, e não clientes como esses se imaginam). Esse argumento se justifica ao se deparar com resenhas, inclusive em jornais de grande credibilidade, onde nenhuma explora esses elementos óbvios - chegando ao ponto, inclusive, de salientar que, diferente de Corra!, este não é um filme sobre racismo - fato que torna a metalinguagem de Peele monumental. O racismo estrutural paira sobre nós, a cada elevador, a cada fila de supermercado, a cada mambembe cuspindo fogo no semáforo - a cada jovem assassinado munido de um guarda-chuva. Nós somos o terror dos nossos irmãos e irmãs. E Peele nos enfia isso goela abaixo - sem vaselina. Uma obra-prima.
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Não assisti o mesmo filme pelo jeito...
Nota 5, no máximo
A maior estreia para um filme não-animado e original desde Avatar. Caramba!