Afogado, herói, fantasma. É sob essa tríade que o filme Praia do Futuro, do brilhante Karim Aïnouz, transita. O olhar sensível do diretor brasileiro já havia caminhado, em seus trabalhos anteriores, pelo desespero do abandono, pelo ato de deixar e de ser deixado, de ser esquecido. O Céu de Suely e O Abismo Prateado já haviam mostrado com uma delicadeza ímpar o desconforto de ver um mundo que, no mesmo instante em que tudo parece estar bem, desaba e desestrutura. Aïnouz traça uma rota muito certeira, com precisão quase cirúrgica, quando evidência a capacidade de entender as mudanças de seus personagens.
Para quem não está familiarizado com a trama, Donato (Wagner Moura) é um salva-vidas que trabalha na Praia do Futuro, em Fortaleza. Aos olhos de Ayrton (Jesuíta Barbosa), seu irmão, Donato é um herói – o Aquaman. É aquele que não tem medo de enfrentar o bravo mar e salvar vidas. E Ayrton é um covarde, que tem medo de água. Porém, um dia, o herói perde o primeiro homem para o mar. A partir do abraço que recebe do afogado, todo o seu eu, rijo e silencioso, começa a ser desconstruído. Neste período de crise Donato conhece Konrad (Clemens Schick), amigo da vítima, e ambos se sentem fortemente atraídos. Donato então parte para Berlim com o alemão, abandonando seu irmão e sua mãe.
Há pouco menos de um ano o longa-metragem causava um furor coletivo quando entrou em exibições nos cinemas brasileiros. Em minha opinião, infundado, visto que o filme não veio para causar esse tipo de polêmica. Porém por uma parcela da população, ver o Capitão Nascimento (como Wagner Moura é conhecido por esses revoltosos, que optam por crer em um mundo onde não há dissociação entre ator e personagem), agora na pele de homossexual, não foi nada aprazível. Sabiamente, Wagner Moura disse em entrevista, de alguma forma prevendo a polêmica: "Temos que ter responsabilidade de não fazer isso virar um assunto”.
O(s) motivo(s) pelo qual(is) o filme deve ocupar o hall de uma das melhores produções nacionais desta década é a capacidade de desconstrução do “herói”, como já fora mencionado. O roteiro, assinado por Karim Aïnouz e Felipe Bragança, é louvável. A escolha por uma divisão em três atos (O abraço do afogado; Um herói partido ao meio; Um fantasma que fala alemão) e um epílogo, torna o filme consistente e coeso, permitindo cada ato explorar ao máximo os seus densos personagens. As atuações também são de uma sublimidade grandiosa, onde nota-se que o trabalho de preparação de elenco fora realizado cuidadosamente por Fátima Toledo. As performances estão tão verossímeis que os silêncios dizem mais do que os diálogos - encontra-se nesse momento outro mérito do roteiro, as zonas de silêncio.
O epílogo do filme revela uma das cenas mais lindas que já vi no cinema. Ela é completada com uma narração em off de Donato, com uma das cartas nunca mandadas ao seu irmão mais novo. É onde todo filme deságua, onde toda construção do estereótipo de medo e coragem é desfeito. Onde o abandono encontra estadia. “Porque tem dois tipos de medo e de coragem(...) O meu é de quem finge que nada é perigoso. O seu é de quem sabe que tudo é perigoso nesse mar imenso. Mas mesmo assim continua correndo, correndo...”.
Originalmente publicado em: www.portalcritico.com/2015/04/critica-praia-do-futuro-2014
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