A Mosca, de Cronenberg, poderia ser apenas mais um filme de terror. Poderia relatar a clássica tentativa do homem de se sobrepor à natureza, principalmente através da ciência, não conseguindo o seu respectivo sucesso, tendo sido transformado em algo aterrador, um monstro, que, no final, é aniquilado pela simples necessidade de se manter as coisas normais, tal como era antes. Porém, Cronenberg vai além.
O filme já começa com uma surpresa, direta, vista através do diálogo seco entre o cientista Brundle e a jornalista Veronica. Não há um clima inicial de apresentação dos protagonistas, de modo a criar no espectador a necessária atenção àquele personagem, pois ele seria o centro da trama. O conteúdo do diálogo é ainda mais interessante, contendo a expressão, também apresentada de maneira seca, “mudar o mundo”. Ou seja, desde o princípio é exigido de quem assiste ao filme uma atenção máxima a todas as questões expostas, sem exceção. E, definitivamente, isso fará toda a diferença para que as nuances propostas por Cronenberg sejam percebidas.
O protagonista, cientista tímido – a despeito do já mencionado seco diálogo introdutório –, rapidamente cativa o espectador, principalmente quando inicia o romance com a jornalista. Mas, cativa de maneira diferente, pois, como dito, não havendo uma apresentação prévia, a despertar suas qualidades iniciais a ponto de fixar-nos a atenção, vai relevando progressivamente traços de sua personalidade, de modo a fugir de um estatismo presente na clássica narrativa hollywoodiana. Chegamos até mesmo a achar graça nele quando descobrimos que ele possui vários jogos de roupa idênticos, de modo a poupar o seu trabalho na escolha.
A jornalista Veronica Quaife também é projetada da mesma maneira. De uma figura oportunista, atrás do furo da próxima matéria, passa a se mostrar uma pessoa atenciosa aos objetivos de Brundle e sua moral científica. O romance dos dois desperta a atenção para o amor deles, tornando-se, em diversos momentos, o ponto principal da narrativa.
E o terceiro personagem da trama, Stathis Boran, já de início, desperta repulsa ao orientar-se por um machismo que, a todo o tempo, se manifesta nas tentativas de fazer sexo com Veronica. O ciúmes de sua relação com Brundle é evidente principalmente quando Boran sugere prejudicar o cientista com a divulgação de sua descoberta sem que ela realmente tenha sido autorizada.
Pois bem, este é todo o quadro do filme. O espectador, apresentado de maneira crua aos personagens principais, diante de um diálogo direto, vai tendo a sua afeição construída no decorrer do filme. Contudo, este espectador não contava com a habilidosa capacidade de Cronenberg conduzir a narrativa, de modo a, progressivamente, despertar a antipatia em relação a Brundle e a simpatia em relação a Boran. Isso mesmo, a mutação sofrida pelo cientista o transforma em um monstro que, ao final, deseja o mesmo para a sua amada. O machista Boran, por sua vez, é quem toma a frente do conflito, encarando com um certo destemor “Brundlefly”. Isto é fundamental e somente dá certo pela forma como foi conduzida toda a narrativa.
Ao final, se se tiver que pensar em uma linha moral de condução da história, Cronenberg sinaliza para o fato de que os seres humanos são, em si, imperfeitos. Porém, tais imperfeições são amenizadas, principalmente quando se está diante... de uma criatura também imperfeita com Brundlefly. Toda a imperfeição humana torna-se algo absurdamente pequena quando se está diante de um monstro-mosca – fruto do impulso humano, talvez do mais humano dos personagens que a narrativa ajudou a construir de maneira progressiva. Logo, nada é mais perfeito que a imperfeição humana.
Cronenberg, dentro de Hollywood, consegue fazer um cinema diferenciado. A mosca, embora seja rotulado como um filme de terror guarda, ao fundo, um drama gigantesco. E é este drama, revelador da condição humana, que desponta como essencial para a valorização do filme. Vale a pena assistir.
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