PARCEIROS DA NOITE
Obs.: Este texto é dividido em três partes. A primeira para situar o filme, explicando um pouco sobre o período em que ele foi lançado; a segunda é a crítica propriamente dita, apontando suas qualidades artísticas; já a terceira analisa a conclusão do filme e deve ser lido, de preferência, por quem já assistiu ao filme. Boa leitura.
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Primeira Parte: O Contexto Histórico.
Martin Scorsese, William Friedkin, Roman Polanski, Francis Ford Coppola, Brian De Palma, Peter Bogdanovich, Arthur Penn, Michael Cimino, Steven Spielberg. Todos esses diretores são grandes nomes dentro da indústria cinematográfica americana dos anos 70. Obras fantásticas nasceram nessa época, como O PODEROSO CHEFÃO, TUBARÃO, CARRIE, O EXORCISTA, TAXI DRIVER, BONNIE & CLYDE, culminando no ultra-mega-hiper valorizado STAR WARS, em 77. Depois desse ano, as produções mais ousadas caíram por terra. O FUNDO DO CORAÇÃO, COMBOIO DO MEDO e PORTAL DO PARAÍSO, todas carregadas da coragem e da cada vez maior megalomania de seus realizadores, foram catastróficos fiascos nas bilheterias e malditas pela maioria da crítica. Poucos foram os que sobreviveram ao "pesadelo dos diretores autorais" (do ponto de vista dos produtores) daquele riquíssimo período.
Após tantos trabalhos complexos, o público foi anestesiado com o espetáculo escapista de George Lucas e, consequentemente, formaram uma platéia mais acomodada que iria render milhões de dólares para produções das mais melosas ao longo dos anos 80. Hollywood viu aí a oportunidade perfeita para retomar o poder aos produtores e frear os impulsos cada vez mais insanos dos realizadores citados no parágrafo anterior. Muitos diretores foram praticamente enterrados no terceiro escalão de cineastas. Outros se adaptaram. Outros surgiram e jamais viram a luz do sucesso. Outros conseguiram consolidar suas visões artísticas com a máscara do “filme de gênero”. Filmes como ALIEN e HALLOWEEN foram capazes de dar continuidade ao princípio de que a linguagem autoral trabalha paralelamente com o gênero, sendo que estes dois citados são infinitamente superiores em estilo, linguagem e temática se comparado a STAR WARS (fica registrada minha alfinetada).
Logo depois, BLADE RUNNER e ENIGMA DO OUTRO MUNDO falharam terrivelmente graças ao grande hit E.T., de Spielberg (um filme excelente, reconheço, mas que não gosto). E assim, claro que com exceções (como SCARFACE, AMADEUS, DEPOIS DE HORAS e NASCIDO PARA MATAR, por exemplo), os anos 80 foram berço de produções trôpegas e extremamente bregas, ainda que tenham caído no gosto da maioria (eu mesmo vibro com ROCKY 3, mas sei de sua inferioridade).
Há também outro fator: a situação da comunidade gay na época do lançamento de PARCEIROS DA NOITE. Muitos membros de grupos pelos direitos LGBTQIA+ da época pensaram que o filme retrataria de forma negativa os homossexuais, o que ocasionou diversos problemas para a equipe de filmagem, como protestos, boicotes e atos que visavam atrapalhar as gravações do filme. Logo depois, vale apontar, veio a devastadora epidemia da AIDS, o que fez com que alguns críticos apontassem o filme como uma narrativa quase profética – o que não deixa ser coerente, apesar de bizarro (ler a terceira parte deste texto). Por outro lado, a censura caiu matando nas cenas do filme, alegando tratar-se de um atentado dos mais agressivos às famílias americanas de "boa índole".
“Mas, cadê a crítica de PARCEIROS DA NOITE?!” Antes de qualquer coisa, se faz extremamente necessário traçar um panorama da época do lançamento do filme para compreender seu fracasso comercial, além da polêmica que o acompanhou até recentemente. William Friedkin, depois do lançamento de duas obras que foram sucesso de público e crítica (OPERAÇÃO FRANÇA, em 71, e O EXORCISTA, em 73), encontrou o mesmo empecilho que seu colega de profissão Francis Ford Coppola: o Ego. Graças ao sucesso, Friedkin se entregou a COMBOIO DO MEDO, uma produção que custou quase dez vezes mais do que o previsto e foi incompreendida em sua época. Independente da qualidade de seu filme (e é, sim, fenomenal), a obra deu um dos maiores prejuízos aos estúdios. Enquanto todo mundo tentava se reerguer de fracassos (ainda que APOCALYPSE NOW tenha vencido a Palma de Ouro em Cannes e seu valor foi compensado nas bilheterias, o trauma foi enorme), Coppola e Friedkin insistiram nas produções dos “seus sonhos”, gerando o esteticamente belíssimo O FUNDO DO CORAÇÃO, de Coppola, que afundou a produtora American Zoetrope, e este PARCEIROS DA NOITE, de Friedkin, que se tornou uma das obras mais incompreendidas e injustiçadas do cinema americano.
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Segunda Parte: O filme.
O astro Al Pacino interpreta Steve Burns, um jovem e inexperiente policial que recebe a missão de se infiltrar no submundo da homossexualidade sadomasoquista das noites de Nova York para dar um fim a uma série de assassinatos brutais. De acordo com as investigações lideradas pelo Capitão Edelstein (Paul Sorvino), há um assassino em série caçando homossexuais. Burns, para evitar conflitos, não diz nada sobre o caso a sua namorada, Nancy (Karen Allen), e se distancia dela para que não haja perigo, ao mesmo tempo em que desenvolve uma pura e sincera amizade com Ted, seu visinho homossexual. Mas aos poucos, o jovem policial acaba sendo afetado pela fauna urbana que passa a freqüentar.
William Friedkin, como de praxe, não poupa o espectador de um olhar mais perfurante da sociedade, ao mesmo tempo em que não permite uma compreensão mais simples do que quer expor com o filme (uma das causas da bilheteria baixa). Disposto a retratar da maneira mais crua possível o ambiente em questão, Friedkin mergulha sua câmera – e consequentemente o espectador – em travelings laterais que deslizam entre corpos masculinos revestidos de couro, jeans e lenços coloridos que funcionam como códigos para tipos específicos de fetiche. A primeira sequência de boate do filme, aliás, é extremamente forte, provocando um riso nervoso e completamente deslocado do contexto (várias bundas peludas e expostas...). O impacto visual é tão grande que põe em cheque os princípios do espectador (“será que sou homofóbico por sentir certo asco disso?” me perguntei, sinceramente), ao mesmo tempo em que tememos pelo futuro mergulho de Pacino nesse ambiente. E o mais legal de tudo, esses caras, que sentimos asco num primeiro momento, são as vítimas! Logo em seguida entra em cena um homem alto de cabelos pretos que, esperando o momento certo, conseguirá mais uma presa para seu ritual horroroso de esfaquear um ser humano pelas costas, amarrado e indefeso em uma cama de um hotel barato. A genialidade da narrativa está em transformar o inicial asco experienciado na cena da boate, em pena e piedade – e a sequência em que o assassino tortura psicologicamente sua vítima (e o espectador) é um dos momentos mais geniais de Friedkin como realizador.
Mergulhado em um mórbido tom frio, o filme se mostra igualmente primoroso em toda sua parte técnica. A fotografia de James Contner cria uma ambientação quase surreal para ocultar/apontar/sugerir possíveis pontos de esconderijo para o assassino, auxiliada pela sábia decisão de Friedkin em mergulhar o rosto do algoz nas trevas. O figurino apresenta uma lógica narrativa extremamente eficiente – a gravata do Capitão Edelstein, por exemplo – assim como a fantástica direção de arte, que cria ambientações que dizem muito sobre os personagens (o paralelo entre o espaçoso e aconchegante apartamento de Nancy e o quarto apertado, escuro e completamente desprovido de cor que Steve Burns passa a viver). Vale apontar também a maquiagem do filme que, regada a suor, faz com que todos os personagens sejam “contaminados” pelo inferno psicológico que o protagonista é submetido, além dos pedaços de corpos encontrados no rio e expostos frontalmente na cena do necrotério. O som é igualmente fascinante, apresentando uma trilha que brinca com os estilos musicais das boates retratadas, ao mesmo tempo em que apresenta uma série de ruídos estranhos e dissonantes, fora que a diegese sonora é muito eficiente, provocando arrepios ao menor sinal de passos e correntes.
Escrito com maestria pelo próprio diretor, o roteiro apresenta sua visão particular do livro de Gerald Walker que deu origem ao filme, além de ser um relato muito preciso de um micro-universo que o cidadão comum da sociedade se recusa a visitar – ou mesmo reconhecer. O submundo apresentado é pesado. Não há quem escape. A história não se fecha de uma maneira tradicional (o que é costume nos trabalhos do cineasta) e as perguntas que ficam no ar são extremamente inquietantes. Ainda assim, Friedkin encontra momentos para destilar seu senso de humor atípico ao colocar Powers Boothe explicando o que cada cor de lenço significa (e a reação de Al Pacino é hilária pela sua quase quebra de sutileza).
Lançado no mesmo ano de filmes geniais como HOMEM ELEFANTE, TOURO INDOMÁVEL e O ILUMINADO (e o Oscar teve a pachorra de premiar GENTE COMO A GENTE), PARCEIROS DA NOITE é uma das grandes obras desse genial cineasta e um dos mais crus retratos dos submundos da “Big Apple”.
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Terceira Parte: Spoiler!
Obs.: Aqui, pretendo expor algumas teorias acerca da conclusão do longa. Recomendo que leia apenas quem realmente tenha assistido ao filme.
O final entregue por Friedkin não é fácil. Aparentemente simplista, o fecho da narrativa ganha força apenas para quem realmente prestou atenção a uma série de detalhes ao longo do filme. Para melhor ilustrar, é bom apresentar algumas das teorias (minhas e de outras pessoas) nascidas das possíveis interpretações:
1 – O homem errado é preso:
Quem acompanha a narrativa atentamente, percebe que o assassino é revelado logo no início do filme, mas sua identidade nos é desconhecida. Porém, podemos notar as seguintes características: ele é alto, tem o cabelo meio enrolado, é musculoso, um dos seus dentes é quebrado (pouca coisa, mas é marcante) e usa óculos ray ban espelhados. Nos demais assassinatos, não há como identificar as mesmas características. Quando o caso é encerrado, Stewie (o suspeito) é preso, mas declara inocência, dizendo que nunca matou ninguém. Logo após uma conversa de Steve Burns e o capitão Edelstein, vemos a cena de crime onde Ted, o vizinho, é a vítima. Ao lado do corpo há uma faca semelhante à usada pelo assassino. Em seguida, temos imagem de um homem com as mesmas características do maníaco do início do filme, entrando em uma boate. Na última cena, Nancy entra em seu apartamento e encontra Burns se barbeando. Ele diz a ela que precisa conversar. Nancy encontra uma jaqueta de couro, um quepe e um par de óculos ray ban espelhados (ela até se diverte vestido esse estranho figurino). Por último, Burns olha para a câmera e o filme acaba.
O que se conclui? Burns prendeu o homem errado e, disposto a caçar o protagonista, o serial killer mata uma pessoa importante na vida do policial (no caso, o amigo). O capitão percebe que Burns está em perigo e o protagonista está para revelar algo para sua namorada, provavelmente irá assumir sua homossexualidade e pretende viver com Ted (Burns não sabe de seu assassinato) – lembramos que Burns demonstrou claro sentimento de ciúme ao confrontar o namorado de Ted, além do declarado afeto pelo amigo (“Queria poder fazer mais por você...”). O olhar de Burns para a câmera (e para o espectador), então, significa algo como “Não me julgue. Este sou eu”.
2 – As vítimas são o próprio assassino:
Recapitulando as características do assassino na Teoria 1, o espectador mais atento percebe que a segunda vítima, do parque, possui todas as características descritas (inclusive o dente quebrado) do psicopata, porém a voz é diferente. Neste segundo assassinato, temos a total ocultação do rosto do assassino, mas é possível perceber que este é um pouco mais magro, de postura levemente curvada e cabelos mais lisos. Duas conclusões podem sair daí:
a) Que o assassino é Stewie, fazendo com que o caso seja encerrado no fim do filme, transformando o assassinato de Ted em crime passional (o namorado de Ted ameaça Burns com uma faca semelhante à do assassinato, mata seu parceiro por ciúme e foge). Mas essa teoria, para mim, não vale.
b) O assassino é a terceira vítima assassinada no filme (o homem de barba morto no inferninho). Isso faz com que prestemos mais atenção ao assassino no terceiro crime. Ele é CLARAMENTE mais baixo, cabelo mais liso e curto e usa o mesmo ray ban espelhados, além de ser muito mais troncudo de corpo. Estas são as características da PRIMEIRA VÍTIMA!
O que se conclui? Em “a)”, que o caso se encerrou e o crime de Ted foi realmente passional. Ou “b)”, que o caso foi encerrado, mas Stewie é inocente. Aí uma das leituras subjetivas seria uma espécie de metáfora sobre a AIDS, onde o instinto assassino é transmitido e imortalizado nas ações desse “fantasma”. Esta segunda conclusão, aliás, transforma o filme em um excelente exemplar de terror sobrenatural, com enfoque na idéia de “Lenda Urbana”. O olhar de Burns para a câmera poderia ter a mesma interpretação da teoria anterior.
3 – Steve Burns é o assassino (ou um dos):
Esta é uma das minhas favoritas. Consideremos todas as anotações do item “b)” da segunda teoria e adicionamos o fato de Burns guardar para si uma jaqueta de couro, um quepe e os óculos ray ban espelhados (idêntico ao do assassino!!!). Se lembrarmos das características do assassino no terceiro crime, podemos eliminar a possibilidade de ser a primeira vítima. O fato é que a primeira vítima é muito parecida com o próprio Burns (o nariz chama mais atenção). E sua estatura baixa só faz a teoria mais sólida.
O que se conclui? Burns seria o seguinte na “linhagem de assassinos”, completando a metáfora e eliminando o tom sobrenatural da Teoria 2, onde a primeira vítima volta como assassino. Dá para se concluir também que Burns matou Ted. Mas se ele realmente tivesse matado Ted, o namorado não estaria foragido (fugiu por medo de Burns?). Assim o olhar do capitão Edelstein para Ted ganha ainda mais força: ele percebe o que ocorreu ali, potencializando a reação dele ao nome John Forbes (o nome falso que Burns utilizou durante o caso). Então, a pessoa que entra na boate é o próprio Burns, preparado para atacar novamente, e seu olhar para a câmera, no final, ganha um tom muito mais macabro.
Independente da resposta (que, na verdade, não é importante), o filme é uma OBRA-PRIMA que desenvolve nosso poder de raciocínio e nos acompanha pelo resto do dia com suas mais variadas leituras possíveis, além de fazer com que questionemos nossos conceitos e preconceitos acerca de um nicho que desconhecemos. Quem assistiu e quiser, procure discutir essas e outras teorias com amigos. Será, com certeza, um passatempo divertidíssimo e infinitamente enriquecedor.
Caso encerrado.
Ótimo filme para um ótimo diretor. Friedkin muito desvalorizado no que tange sua filmografia. O cara deveria ter bem mais prestígio pelo que fez. Cruising, Sorcerer e To live and Die in L.A., The Boys in the Band são filmes muito pouco comentados , conhecidos só por quem buscou sua filmografia.
Excelente análise, muito diferente do que a maioria dos usuários posta. Gostei muito.
Mas, depois de reler as teorias, percebi que preciso rever o filme com mais atenção para escolher uma delas ou formular outra.
Esse filme é maldito para Friedkin, depois desse o cara foi meio que colocado de escanteio...