OPERAÇÃO FRANÇA
Poucos são os filmes que conseguem ressignificar sua própria linguagem e estrutura. Um número menor ainda é o de filmes que, misturando gêneros comuns da indústria, conseguem a proeza de despertar uma série de sensações conflitantes no espectador, além de apresentar a característica específica citada no início do parágrafo. O que nos leva a William Friedkin e seu impressionante OPERAÇÃO FRANÇA.
Se em O EXORCISTA (filme seguinte a OPERAÇÃO FRANÇA, e exibido na primeira sessão da nossa mostra) Friedkin busca no horror um caminho para perscrutar a desilusão, o ceticismo e a total ausência de esperança, para logo em seguida transmitir uma mensagem surpreendentemente otimista, em OPERAÇÃO FRANÇA há o caminho inverso – e é claramente compreensível que estes dois filmes estejam tão próximos um do outro, representando dois lados de uma mesma moeda.
Recheado de quadros e sequências icônicas, como o belíssimo plano geral que abre o filme, OPERAÇÃO FRANÇA banha os olhos do espectador com um desfile de puro bom gosto e excelência, calcado em um realismo semi-documental absolutamente impactante. Friedkin, vale dizer, ganhou um Oscar por sua direção neste filme (garantindo mais 4 estatuetas para sua equipe, incluindo Melhor Filme e Melhor Ator para Gene Hackman). E não é para menos! Determinado a torturar seus atores para obter uma cena perfeita, o cineasta não poupou palavrões ao desempenho de Gene Hackman que, enfrentando um conflito interno muito pesado na época, não conseguia alcançar a dureza exigida para Popeye Doyle. Da mesma maneira, Friedkin ousou criar aquela que, segundo ele mesmo (egocêntrico ao extremo), seria a mais impressionante cena de perseguição da história do cinema. E não só conseguiu criar um espetáculo à parte (a cena funcionaria como um curta sensacional), mas inseri-la em um contexto muito mais profundo do que as pessoas referenciam normalmente.
Como se não bastasse um design de produção extremamente corajoso – as cenas foram feitas TODAS em locação – e uma fotografia nada menos que soberba, OPERAÇÃO FRANÇA ganha contornos de obra-prima ao entregar (ou não) um dos finais mais abertos a discussões que já se viu no cinema norte-americano (mais detalhes nos próximos parágrafos), e o diretor faz questão de chutar o espectador para fora da projeção ainda muito atordoado e completamente contaminado por aquele mundo estranho e subversivo.
O ENIGMA E O TIRO QUE ECOA PARA SEMPRE:
(spoiler!!!)
Nas palavras do produtor de OPERAÇÃO FRANÇA, o filme recicla toda sua lógica narrativa ao entregar “O Enigma”. Como pode uma produção tão ambígua quanto esta ter ganhado um prêmio tão comercial quanto o Oscar? O que faz deste filme uma obra fundamental da história do cinema? Como é que um final tão difícil possa ser celebrado por boa parte da crítica especializada e, ainda mais, pelo público? A grande sacada de Friedkin, que alterou o final original, foi criar um eco suficientemente potente que pudesse acompanhar o protagonista para sempre em sua “perdição”. E o espectador, pego de surpresa, sai da projeção atordoado, mas completamente encantado, com o que testemunhou até então.
E o que se vê em OPERAÇÃO FRANÇA até seus últimos cinco minutos? Um tradicional thriller policial eletrizante e envolvente. Doyle devora seus inimigos com o olhar; Cloudy é fiel aos apontamentos de seu parceiro; Alain é um vilão extremamente elegante; Mulderig é um verdadeiro pé no saco do protagonista; além de outros detalhes completamente reconhecíveis. O mundo retratado com singular realismo por Friedkin é sujo, feio, fétido e ameaçador. Não há outra forma de encará-lo a não ser pelo olhar cínico e desesperançoso, porém extremamente atento, de Popeye Doyle. Uma simples conversa entre ricaços em uma mesa de bar pode ser o indicativo perfeito para que o policial suspeite de uma poderosa negociação de heroína – a fotografia, aliás, é excelente ao atribuir ao olhar do espectador o elemento “pop eye” do personagem de Gene Hackman, onde destaca em uma luz mais clara mesa dos suspeitos, ao passo que as demais mesas estão mergulhadas em vermelho.
Mas é quando Doyle, após ser enganado por Alain Charnier (Fernando Rey) mostra seu lado obsessivo até então desconhecido (ou ignorado?) por nós, seus cúmplices, que foi o responsável pela morte de um membro da corporação. Doyle é constantemente acusado pelo agente federal Bill Mulderig de ter matado um provável antigo parceiro seu (“A intuição dele custou a vida de um bom policial!”, diz o personagem com sarcasmo e, ao mesmo tempo, amargura). Como fantasmas, essa culpa, o senso de justiça completamente deturpado e a obsessão desenfreada de capturar Charnier, o homem que o enganou, povoam a mente de Doyle, que acidentalmente mata Mulderig em um sombrio prédio abandonado – uma (e olha que genial por parte de Friedkin!) antiga instituição para deficientes mentais – e, ignorando o assombro de Cloudy, continua a caçar sua sombra (Charnier). Friedkin, ciente deste duelo quase mitológico, aponta com todas as forças as diferenças destes homens: se Charnier janta aconchegado em um fino restaurante, Doyle passa o dia em pé, comendo pizza velha e tomando café frio; se Charnier é elegante e educado com as pessoas, Doyle é machista, racista e terrivelmente grosso com todos que o cercam; Charnier é calculista, frio e sabe o que fazer para escapar (e escapa), ao passo que Doyle é cego e estabanado, não se importando com a vida de inúmeros civis que aparecem no seu caminho.
E o que é o tiro? A única informação que temos é a imagem de Doyle correndo para o fim de um escuro, decrépito e enlameado hall e sumindo em um provável corredor. Depois apenas o som de um disparo. Quem atirou? Doyle matou o francês? Ou se matou? Ou Foi morto por Charnier? O que sabemos depois é que Charnier nunca foi pego e que Doyle e Cloudy foram afastados do trabalho (além de outras informações sobre os envolvidos no caso). Mas será este o fim de tudo? A resposta, pelo menos para mim, é sim e não. Não interessa o que vem depois, o assombro e o horror diante de um ser humano tão quebrado quanto o protagonista já é o suficiente para nos aterrorizar. Doyle, o truculento e carismático policial que aprendemos a gostar, se foi para sempre. Ele afundou em um oceano de insanidade.
O que realmente importa em OPERAÇÃO FRANÇA é que o ser humano é uma criatura triste que caça seus antagonistas não para obter justiça, mas por inveja. E é brilhante apontar como William Friedkin conduz nosso olhar para essa conclusão aterradora.
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