Nada mais miserável do que uma vida tediosa desprovida de metas e objetivos, na qual eu sou coagido a viver algo que não me pertence, transformando meus desejos em um joguete, além de tolher a minha vontade de potência reduzindo-me a um reles parvo metido a besta. Nesse caso, “a maior felicidade é quando a pessoa sabe por que é infeliz”. Como de costume, Dostoievski parece desnudar o homem do véu que omite sua nudez moral, alcançando a hipocrisia que nos torna falsamente belos – como diria Luiz Felipe Pondé.
É justamente no ponto referente ao tédio existencial e a infelicidade que o filme erige seu roteiro. Ou melhor, não só no retrato visceral da infelicidade propriamente dita, mas na busca frustrada pela felicidade, o eterno esquadrinhar de todos os recantos de nosso fatídico destino na ânsia por encontrar algo tão fugidio como a felicidade. Invadi-me uma pergunta com a qual todos deveriam se deparar: O que é felicidade? Se as pessoas passam a vida inteira a correr atrás dessa galinha dos ovos de ouro, pelo menos deveriam saber do que se trata. Será que é algo tão simples que só os tolos a encontram ou será algo tão complexo que apenas os além-homens de Nietzsche a possuirão? Sei lá, pouco me importa, não estou aqui para responder, mas apenas para suscitar questionamentos.
O roteiro é bem conciso, sem reviravoltas mirabolantes, mas grandioso ao se abrir a uma miríade de temas a serem debatidos. A grande beleza desse roteiro se deve ao fato de ele lançar mão da linguagem cinematográfica para se arriscar nos profundos mares da filosofia ao retratar e debater o monótono cotidiano de pessoas ordinárias, distanciadas de qualquer idealização estilística. Ou melhor, ele rejeita categoricamente qualquer tipo de idealização e a prova disso encontra-se na caracterização tanto dos ambientes – frios, pequenos e sujos – quanto dos personagens – nenhum deles é bonito, na verdade eles são grossos, rudes, burros e mal-educados. Isto é, o roteiro cria um microcosmo que autopsia as mazelas sociais e morais que assolam o homem.
O diretor, munido de uma excelente fotografia, pinta com tons cinzentos a poeirenta história de dois desocupados presos em um espiral de tédio, submetidos a uma vida insípida, incapazes de atinar acerca de seus destinos desprezíveis. A fotografia é belíssima, profunda, parecendo até que foi construída por Cartier-Bresson.
Para elucubrar essa situação modorrenta, nada aos meus olhos se mostra mais abrangente que a filosofia de Camus. Ultimamente, nenhum outro pensador retumbou com tanta intensidade em meus pensamentos quanto ele. Em tempos onde as pessoas impressionam-se apenas com desgraças, aleivosias, entretenimento barato e filosofias de bar, eu me dou ao luxo de cair em deleite por coisas tão prosaicas que não reclamam investimentos faraônicos, prazeres que não demandam mais do que o valor de um livro, sendo Camus o achado mais recente.
Camus, ao conceder fumos míticos ao homem por meio da comparação com Sísifo, cria uma metáfora que parece capturar a natureza humana de maneira holística em toda a sua faceta trágica, avisando-nos sobre nossa situação de suplício perante o mundo. Se Sísifo tinha consciência de que a pedra erguida até o alto da montanha tornaria a cair, tendo de novamente erguê-la para todo o sempre, o homem retrocede em sua morosa caminhada rumo ao Além-Homem ao cerrar deliberadamente os olhos para seu funesto destino. Desse modo, a grandeza de Sísifo reside no fato de ter humildade ao reconhecer que é um derrotado aliada a coragem de permanecer de pé frente a sua situação periclitante, enquanto que a torpeza do homem é negar sua sina e fugir de seu fardo com o escopo de alcançar algo melhor, mesmo que seja no plano do imaginário e do ilusório. É o homem fútil em busca de sentido para uma vida miserável.
O homem é um animal de faces coradas que venda os olhos e se equilibra em uma corda suspensa no alto de um desfiladeiro que liga o macaco ao Além-Homem. Ele trilha a contramão dos planos de Nietzsche e Kirillov ao se aproximar de sua natureza irracional e estúpida, por isso está fadado ao tédio enquanto não se conscientizar de sua situação de eterno retorno no mundo. Tudo é repetitivo, tudo se repetirá, até o que for repetido se repetirá infinitas vezes, e não adianta pensar que atitudes atenuantes irão surtir efeito, estaremos presos em uma roda viva que nos assola mas faz parecer que é apenas um degrau ou uma provação que nos conduzirá ao onírico plano da realização plena.
Somos vítimas conscienciosas do mal-estar em sociedade, ao podarmos nossos desejos em prol de uma falsa convivência social harmoniosa. Tolstoi já asseverara que o homem pode viver 100 anos na cidade sem perceber que já está morto há muito tempo. Cobrimo-nos com um manto hedonista (no sentido mais transviado do termo grego) e forçosamente nos relacionamos com um monturo de indivíduos idiotas que cultuam a futilidade, pautando a vida em um ideal utópico de felicidade.
Toda essa supervalorização do convívio com o outro acaba formando uma estranha situação, cunhada de “Paradoxo do isolamento em meio à visibilidade” por Richard Sennett, onde por maior que seja o convívio social nos ambientes circundantes ao indivíduo, maior será a segmentação no que tange ao relacionamento humano. Nossas vidas parecem um quadro de Hopper, onde tudo parece um tanto ermo, onde as pessoas por mais que estejam juntas não se dão ao trabalho de falar com as outras, onde o tempo parece se arrastar pela eternidade sem a menor pressa. Ou melhor, (Agora é minha vez de metaforizar a figura humana com nossos antepassados mitológicos): somos verdadeiros Anfiões que ressoam esquálidas notas de suas flautas com o fito de construir em torno de si uma muralha intransponível.
Por fim, novamente Dostoievski resume numa frase todo um pensamento que muitos brigariam e até venderiam suas mães para um dia florescer em seus intelectos, sem nunca saber que nem todos tem habilidade para pensar – existem pessoas burras e limitadas que infelizmente ainda se iludem com o discurso homogeneizante de que todos tem capacidade de se tornar livres pensadores e intelectuais. Mas voltando a um gênio de verdade, um autêntico extraordinário (como diria Raskolnikov): “É melhor ser infeliz, porém estar inteirado disso, do que ser feliz e viver sendo feito de idiota”.
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