Existem escritores habilidosos, que com, digamos, truques literários se alçam entre os mais-mais da literatura. Mas há aqueles que, sem truque algum, fazem desaparecer um navio e de repente tiram-no da orelha. É mágica. No cinema, há os mesmos dois tipos. Neste filme, Walter Salles não tira um navio da orelha, mas pelo menos, uma moeda, tenho que admitir. Continua sendo mágica — uma pequena mágica — fazer um filme sem grandes clímax, truques publicitários (por vezes, até louváveis) ou vernizes modernosos.
Sem tirar os méritos do diretor, boa parte da mágica se deve ao personagem que, se não era o grande revolucionário, era um mito no casulo. Na escolha do tema — em que alguns podem achar injustamente que havia oportunismo — é que está um grande mérito de Salles. Quando se escolhe fazer um road movie, não há espaço para malabarismos, já que possíveis delírios de um diretor extravagante (mesmo que fosse genial) poderiam diluir a aura fundamental do gênero: a honestidade e a simplicidade. Quando um personagem põe o pé na estrada, ele procura algo e, consequentemente, acredita intransitivamente.
O viajante seja Kerouac, em On The Road, Henry Milller, em sua obra, ou o pequeno príncipe, todos eles procuram desesperadamente por algo mais que o fim dessa ou daquela rodovia. Há um quê de ingenuidade nisso tudo. Afinal, os cínicos não estão atrás desse tipo de beatitude, assim como há um tipo de cinema que não procura nada e não é pior por esse motivo.
Essa busca, no filme, é algo muito sutil. Pequenos avanços que escondem uma tempestade de escolhas nos jovens Ernesto Guevara de la Serna (Gael García Bernal) e Alberto Granado (Rodrigo de la Serna). Nota-se isso pelo resultado da jornada em comum: as mesmas estradas levaram Guevara e Granado a destinos diferentes. Essa subtrama que se desenrola de modo quase imperceptível só vem à tona na cena em que Guevara atravessa o Rio Amazonas a nado, para comemorar seu aniversário de 24 anos ao lado dos leprosos — separados dos funcionários, na Colônia em que os dois rapazes trabalhavam voluntariamente. Aí surge o mito, mesmo que mergulhado em incertezas, enquanto Granado escolhe um emprego seguro, como se a viagem pelo continente fosse uma espécie de despedida para a vida segura e comum que levava em Cuba.
A América Latina é pano de fundo para isso tudo. Mas não passa mesmo de um pano de fundo. A pobreza com que o espectador se depara é a mesma que lhe saltaria os olhos em vários outros lugares do mundo. Não há regionalismos, apesar da bela fotografia dos Andes ou da pobreza dos mineiros da Bolívia. Mais que de Che Guevara, da pobreza ou de latinidade, fala-se em Diários... do poder transformador da juventude, de esperança — valores muitas vezes esquecidos, tanto neste começo de milênio, quanto na época em que o jovem Che acelerava a "La Poderosa" pelas poeirentas estradas do continente.
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