As pessoas podem usar de quantos adjetivos quiserem para se descrever; sempre serão adjetivos que elas desejam que os outros usem para descrevê-las quando delas lembrarem, queiram estar dizendo a verdade sobre sua personalidade ou não. Na maioria das vezes, a autodescrição que alguém se faz é a mais distante da verdade o possível (uma dica sociocultural: se você estiver perto de uma pessoa que se descrever como "eclética", corra como se uma bomba estivesse prestes a explodir). Mesmo quando alguém abre mão de adjetivos depreciativos para falar de si mesmo (como: "sou psicótica, obsessiva, chocólatra...", que eu já li em "n" textos espalhados por aí), eles sempre são usados "no melhor sentido da palavra". Mas uma coisa é certa: ninguém se acha uma pessoa ruim. Em algum momento da história sociocultural do mundo criou-se a linha divisória entre o bem e o mal, e todo mundo foi para o time do uniforme azul.
Isso é o maravilhoso sobre "Memories of murder", uma absoluta obra de arte coreana (e eu não estou usando o termo "obra de arte" livremente) que justifica a atuação de órgãos de Direitos Humanos mesmo quando defendem confessos assassinos estupradores de bebês — para descrédito da sociedade. Não vai ser por causa das atitudes que um ser humano vai deixar de ser humano. Pode ser abrupto, mas vou pular direto para o final, que permanece vivo comigo desde quando assisti ao filme: depois de toda a merda ter voado no ventilador, o epílogo quase literário do filme é orquestrado como a tirada de uma piada. É necessária apenas uma rapidíssima troca de diálogos entre dois personagens para finalmente "Memories...", um suspense baseado num caso real, fazer sua crítica social e me trazer às lágrimas.
O filme necessita de um pouco de background na História Coreana: assim como o Brasil, o país passou por uma época de severa ditadura militar. Uma das características mais opressoras era o toque de recolher, anunciado por uma sirene que ecoava à noite por todas as cidades. Entre os anos de 1986 e 1990, a Coréia teve seu primeiro caso de serial killer oficialmente reconhecido. O assassino estuprava e matava — com requintes de crueldade —, mulheres de uma área rural do país, sempre durante o toque de recolher. Em "Memories of murder", acompanhamos a chegada de um policial da cidade grande à cidadezinha. Ele se integra à investigação de dois policiais locais, dois caipiras no pior sentido da palavra: truculentos, ignorantes e corruptos, mais interessados em encontrar "um" culpado e não "o" culpado. Não bastasse, toda a força policial local parece primar pela incompetência. Resta ao sujeito fazer às vezes de consciência do local, enquanto os valentões, embora bem intencionados, parecem boicotar a solução do caso.
No desenvolver desse thriller, hollywoodiano em qualidade e ritmo, e Europeu em sua reflexão e ambições artísticas, o diretor Joon-ho Bong consegue falar da humanidade como um todo. É uma beleza só. Não bastasse o filme funcionar como obra pensante e pulsante, é um excelente thriller policial. Os primeiros 45 minutos são puramente asiáticos (i.e.: lentos), focando na decadente delegacia, a pitoresca cidade e nos oferecendo o quadro de suspeitos, mas quando os policiais acidentalmente se enfiam numa tocaia para o assassino — uma cena que começa cômica, passa para amedrontadora e termina com uma eletrizante perseguição —, "Memories..." parece levar um tremendo choque na nuca e torna-se um suspense policial que nada fica a dever aos melhores (eu estou dizendo MELHORES) similares americanos. A trama neste lembra muito “Perversa paixão", com Clint Eastwood, só que mais aterrorizante por ser real: há uma cena numa floresta que começa estender-se e estender-se, que leva a angústia de quem assiste a níveis altíssimos.
Melhor do que isso: todas as sequências relacionadas à próxima vítima do assassino são assustadoras e tensas, mesmo que o filme não nos tenha dado nada sobre as vítimas em especial. O trio de atores principais, Kang-ho Song, Sang-kyung Kim e Roe-ha Kim, confere toda a importância que o espectador necessita para se envolver na história e, oh-my-god!, é uma trinca de ases. Aqui não há o clichê "nós nos odiávamos no começo, mas depois viramos melhores amigos": durante toda a história, há uma batalha de vontades entre a sofisticação do policial da cidade grande e a truculência da dupla local — eles nunca chegam a se gostar, mas resistem ao seu máximo à transformação que estão causando entre si, uma transformação inevitável, por sinal. A coisa mais assustadora para eles é reconhecerem-se no outro, do qual tem tanto preconceito.
Nós queremos nos espelhar nos mais belos, nos mais caridosos, no comercial da Ralph Lauren para tentar nos iludir, de algum modo, que podemos ser horríveis. Eu nunca entendi quando as pessoas utilizam a criança como emblema para tudo que há de melhor no ser humano: lembro-me de ser conscientemente irritante quando era criança — má, egoísta e manipuladora, para conseguir o que eu queria. Se você acha que a "sacada" final de "Memories..." é um tapa Lars-Von-Triersco na cara, uma surpresa: ela nos é apresentada de modo cândido, conformado e até carinhoso. É uma aceitação da nossa feiura com a calma e a segurança de um ditado oriental. Ninguém está acima do bem e do mal. Mas mesmo que você esteja consciente disso, "Memories of murder" ainda vai te arrebatar.
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