'A aceitação de novos espectros de interação' ou 'O amor salva a todos'
A garota ideal (Lars and the real girl), 2007, é um filme que tem como premissa central a seguinte temática/enredo: um homem com traumas (ou assuntos mal resolvidos de relacionamentos e interações interpessoais) de infância/desenvolvimento tem dificuldades, na idade adulta, em estabelecer relacionamentos de contato (e por vezes de convivência) com as pessoas à sua volta (incluindo-se, nesse caso, familiares e conhecidos). Suas interações são estabelecidas sobretudo por convenção, pois está cercado por colegas de trabalho, conhecidos da igreja, seu irmão e sua cunhada etc, logo, menos do que intencional, as relações são quase sempre pré-determinadas, o que influencia tanto nas fugas da personagem central, como no distanciamento emocional e físico optado por Lars. Diante dessa ausência de interação intencional, nos moldes do que a sociedade defende como interação e relacionamento socialmente aceitos e desejáveis, Lars surge com uma proposta contra-intuitiva: adquiriu uma namorada pela internet, contudo, não se trata de uma namorada real, mas, sim, uma garota ideal, isto é, uma boneca para adultos (sex doll). Ao contrário de tratá-la como um objeto de satisfação pessoal, Lars a utiliza como uma companheira para desenvolver/resolver seus problemas psicológicos, mesmo que tal escolha tenha sido feita inconscientemente.
O que mais chama a atenção no filme é a forma como a cidade toda, de típico retrato interiorano, mobiliza-se para ajudar o jovem Lars nesse processo tão angustiante, que recobre seus traumas infantis pautados em mortes familiares, abandono, ambiente desfavorável ao contato social etc. E a boneca, nomeada de Bianca, é personificada por todos habitantes da cidade, que a tratam como uma pessoa real. O que na verdade parece estar acontecendo, ao longo do filme, é uma transferência de personalidade, pois Lars interage com as pessoas, abre-se aos amigos/conhecidos/familiares, utilizando a boneca para isso. Antes suas interações eram um tanto mecanizadas, automáticas, repulsivas para ele, pois desagradáveis. O que poucos perceberam, tanto os personagens do filme quanto muitos espectadores, exceto talvez pela Dra Berman, é que talvez as dificuldades de relacionamentos ditos 'normais' não se devam sobretudo por timidez, insegurança, dificuldades sociais, mas sim por uma opção consciente de Lars. O filme, entretanto, permite essa leitura, mas opta por seguir uma abordagem romantizada desse fenômeno, isto é, a leitura do amor.
Nessa leitura do amor, é graças a paciência e dedicação de toda a cidade para com Lars e seus delírios que a situação do jovem é contornada. O amor comunitário, paciente, que aceita as diferenças e peculiaridades, permite a Lars curar-se de sua enfermidade temporária, e permite, assim, que ele possa ter uma vida nos moldes civilizados americanos. Isso fica sugerido principalmente pela evolução da personagem ao longo do filme, antes quase não saia de casa e de repente passa a participar mais de festas ou da vida íntima de seu irmão mais velho. Até mesmo a morte de Bianca representa uma simbologia complexa criada pelo próprio personagem para garantir sua travessia, sua mudança, seu recomeço para um nova vida, uma vida onde possa abraçar, tocar, beijar, namorar...
Essa leitura agradável, quando analisada à luz da representação científica é bem-vinda, visto que o filme pode ser lido como uma simbologia às doenças, distúrbios ou transtornos a que muitos são acometidos e que, por essa razão, necessitam de uma série de apoios para que sejam tratadas, minimizadas ou curadas. Talvez por optar por um desfecho otimista, o filme tenha deixado de lado todas as questões que envolvem o preconceito, as desavenças, as dificuldades, os impasses que muitos personagens da vida real são acometidos quando o assunto é diferença. E nesse sentido, caberia dizer um pouco sobre a outra possível leitura dessa obra: a escolha, a aceitação, os novos paradigmas da sexualidade e da interação social.
Nessa leitura, estamos falando das novas formas de relacionamentos amorosos, por exemplo, ou dos novos estilos de vida - talvez não tão novos assim. Lars poderia simplesmente não compactuar com a vida monogâmica estabelecida pela comunidade onde estava inserido; mais ainda, poderia não se orientar à interação carne-carne com outro ser humano; poderia simplesmente decidir manter-se recluso, solitário, assexuado; da mesma forma, poderia optar por relacionar-se com objetos inanimados, sem sofrer qualquer repressão social por isso. Tal temática poderia ter sido levada adiante caso a perspectiva da obra não optasse pela romantização massificada do filme. Caso a perspectiva da obra abarcasse outros intuitos, haveria mais debates e críticas especializadas sobre essa temática tão assustadora para a cultura ocidental nos dias de hoje.
Entretanto, o programa do filme e os objetivos aos quais ele se propõe a tratar são muito bem desempenhados por toda a equipe envolvida com o longa-metragem. Para refletir sobre a vida e suas relações coletivas demandadas, ou para se divertir levemente com um romance dramático diferente, vale conferir!
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