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Críticas

Cineplayers

Os rapazes na selva.

9,0
O inicio do século vinte é um período que sugere um fim de civilização e começo de outra. Guerra mundial, vanguardas artísticas e movimentos políticos e revolucionários, barbárie em larga escala planetária. O cinema como uma grande novidade ainda em transformações, o advento da música popular prestes a se submeter a movimentos de sofisticação e industrialização maciça. As maneiras de as pessoas se comunicarem ou receberem dados se ampliando em criações que o tempo demonstraria não ter fim. Aprofundamentos de estudos em torno da psicanálise, socialismo e doutrinas diversas, teoria da relatividade etc. Todo mapa global praticamente conhecido e definido, quase que desprovido de lacunas e mistérios. O homem no universo mais interessado em explorar as possibilidades em potência da própria mente ou empenhado na destruição em massa como forma de controle de território ou disseminação das suas ideias. 

Num contexto tão vigorosamente realista e científico, buscas por terras e cidades desconhecidas pelo mundo afora soariam deslocadas, reduzidas no imaginário coletivo à época das grandes navegações e expansões dos impérios coloniais. Z - A Cidade Perdida, porém, trata sobretudo de projetos bastante pessoais que o homem costuma abraçar, empresas que o devoram e terminam por inevitavelmente o engolir. É relativamente conhecida a jornada do major Percy Fawcett (Charlie Hunnam), que no seu trabalho de geografar remotas zonas se embrenhando em selvas na América do Sul durante o ciclo da borracha, encontra vestígios de uma civilização oculta. Ainda que para muitos sua procura se concentre em quimeras particulares e razões obscuras, que em verdade vão muito além de uma simples glória individual, permanecendo todo o tempo carregado de convicção e retidão, o que parece tornar mais do que relevante os seus esforços em contribuir com o que seria um pequeno capítulo na história humana.

O major Fawcett era o melhor dentre o que a classe militar britânica poderia ter produzido. Corajoso enquanto soldado, hábil na liderança exercida entre seus homens, e de dedicação exemplar aos estudos e pesquisas. Logo no começo em uma atividade de caça num campo londrino Fawcett se desvia da rota seguida pelos colegas em seus cavalos, e disparando por um caminho supostamente inviável ignora os alertas que lhe são dirigidos e fulmina ele mesmo a presa a ser acossada. As cenas bem posteriores nas trincheiras da Primeira Guerra nos fazem pensar que James Gray é um cineasta que bem poderia nos oferecer um dia um filme integralmente dedicado ao gênero. 

Um documento garimpado pela esposa de Fawcett em biblioteca do Reino Unido, e outro cadastrado e arquivado na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, originalmente escrito por um bandeirante ao rei de Portugal, descrevendo a descoberta de uma gigantesca cidade vazia, abandonada, reforçam a crença de Fawcett. Na profundidade da floresta, após a subida por um rio do qual homem nenhum antes regressara, ele e seus companheiros deparam-se com cerâmicas que indicam resíduos de habitações de reinos míticos de ouro. No que resultaria na obsessão por uma espécie de Eldorado particular. 

Como em toda selva, há um momento em que se deixa de ser o caçador para tornar-se a caça ─ e várias das sequências das expedições que acontecem num período de cerca de vinte anos remetem inevitavelmente àqueles filmes de Werner Herzog em meio aos barcos, rios, índios e óperas nas densas matas da floresta. No entanto, é necessário recordar que, além de estas imagens impregnantes de Gray terem uma densidade e refinamento pictóricos bastante específicos, ele sempre foi um cineasta de matriz essencialmente viscontiana. Ao menos numa questão de temperamento, postura e em como lidar com o drama. Amantes (Two Lovers, 2008), como admitiria o próprio realizador, tem mais a ver com a antiga versão de Noites Brancas (Le Notti Bianche, 1957) do que com a novela original de Dostoievski. Mesmo as evidentes influências que os filmes setentistas de Coppola parecem inegavelmente exercer em parte dos trabalhos de Gray, elas bem podem se ocasionar pelo filtro da influência que o antigo mestre italiano desempenhou sobre Coppola (e em outros representantes da Nova Hollywood, vale mencionar). Os constantes conflitos familiares, sobretudo os fraternos, dos primeiros filmes de Gray, por exemplo, tanto poderiam remeter aos de alguns de Coppola quanto a um Rocco e seus Irmãos (Rocco e i suoi fratelli, 1960).

"Eu serei livre... mas você nunca terá como escapar", alertou na primeira das expedições mostradas em Z o selvagem ao homem europeu, civilizado, culto e outrora feliz com sua família na busca utópica pela cidade perdida, tão obcecado em seu desejo quanto outros personagens de filmes anteriores de James Gray. Não conseguiria dissociar essa cena à chegada do protagonista de Morte em Veneza (Morte a Venezia, 1971) à cidade italiana que tomaria conta de seus sonhos, e na qual é recebido por um mendigo velho e bêbado às gargalhadas na sua direção, como a lhe transmitir os piores auspícios. A lembrança do filme de Visconti vem em mente, pela primeira vez, no passeio idílico no campo ensolarado e bucólico, acompanhado da esposa abnegada e da criança que mais tarde encontrará também a própria tragédia. Filmes completamente diferentes, em comum além das sequências citadas acima, somente o fato de serem jornadas rumo a alguma forma de autodestruição, em meio a um espaço tornado mítico e perigoso.
   
Se a filmografia de Visconti é claramente dividida entre filmes consagrados aos proletários presos a condições penosas, e filmes com aristocratas circulando no maior luxo, uns e outros obstinados em conservar o que pode haver de mais precioso em suas almas, agarrados às verdadeiras riquezas que residem em seus espíritos, podemos dizer que, de Fuga Para Odessa (Little Odessa, 1994) a Z- A Cidade Perdida, James Gray realiza com os seus personagens igual procedimento, apenas abdicando da distinção entre aristocratas e proletários. Para de uma mesma forma fazer emergir um encontro de fisicalidade com abstração que se apresenta mais acentuado e radical do que o visto em qualquer outro diretor americano de nossa época. A busca por um cinema que ainda vive e um cinema que dialoga com o que há de mais bem guardado em nossas almas. 

Comentários (2)

Vinicius Garcia | domingo, 21 de Janeiro de 2018 - 18:20

beleza de crítica hein

melhor que isso só acordar no fds e já ver uma crítica do lazo no cp, rs

Declieux Crispim | segunda-feira, 22 de Janeiro de 2018 - 07:42

Melhor texto que já li sobre esta obra-prima. As associações com Visconti são brilhantes. Grande Lazo.

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