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Críticas

Cineplayers

O típico filme feito para premiações – e não no bom sentido.

5,0

É inevitável: basta chegar a época da temporada de prêmios de Hollywood para apontarem no horizonte diversos filmes que parecem ter sido criados única e exclusivamente com o objetivo de arrecadar estatuetas. Não são obras tematicamente desafiadoras, inovadoras na linguagem ou até mesmo originais em termos de ideias, mas sim produções desenvolvidas da forma mais formal possível, até mesmo simplista, que buscam soluções fáceis para agradar a maior fatia de público e, claro, cair no gosto dos conservadores que normalmente decidem os vencedores dessas cerimônias. Na edição de 2010, por exemplo, o representante dessa leva foi Um Sonho Possível (The Blind Side, 2009), indicado à categoria principal do Oscar e que rendeu a Sandra Bullock o prêmio de melhor atriz.

Não por acaso, John Lee Hancock, o homem por trás das câmeras daquela obra sobre o jovem sem perspectivas que é adotado por uma família rica e se torna um astro do futebol, também é o responsável pelo “filme de Oscar” desse ano, Walt nos Bastidores de Mary Poppins (Saving Mr. Banks, 2013) – em mais um título nacional a entrar na lista de atrocidades cometidas pelas distribuidoras brasileiras. Trata-se, em essência, do mesmo filme covarde e inofensivo, com uma história previsível e uma abordagem piegas e superficial no que concerne as relações entre os personagens, cuja verdadeira intenção parece ser apenas levar a trama até a cena catártica ao final, quando serão utilizados todos os artifícios existentes para fazer a plateia chorar.

Escrito por Sue Smith e Kelly Marcel, Walt nos Bastidores de Mary Poppins, como se não bastasse essa falta de ousadia, ainda sofre com problemas narrativos que o posicionam aquém, inclusive, dos resultados alcançados por Hancock em Um Sonho Possível. A principal dificuldade do filme diz respeito à estrutura escolhida pelo cineasta e seus roteiristas. A história se desenrola em duas linhas temporais, mostrando ao mesmo tempo a visita da escritora P.L. Travers aos estúdios Disney para a adaptação de Mary Poppins e, através de flashbacks, a sua infância na Austrália, especialmente a relação com o pai. Por mais que busque algumas transições naturais (como a fumaça do trem que se transforma em nuvens vistas pelo avião), o vaivém entre passado e futuro jamais funciona de forma orgânica, resultado em uma narrativa truncada que prejudica a fluidez da história. Sim, tudo parece ter um objetivo, mas ele só chega a fazer algum sentido após boa parte da projeção; até lá, a plateia parece estar diante de dois filmes diferentes dentro de um só, com histórias distintas cuja falta de conexão acabam por prejudicar um ao outro.

Da mesma forma, o roteiro é incapaz de  tornar verossímeis as relações entre aquelas pessoas e o desenvolvimento de cada personagem. Boa parte do que se vê em tela parece mera conveniência de roteiro, situações criadas para fazer a história andar, mas que não possuem justificativa nem motivação para acontecer. A construção da relação entre Travers e o motorista é um bom exemplo: de uma hora para outra, a escritora fala que Ralph é o único americano de quem gosta, sem haver qualquer motivo para isso, uma vez que havia tratado o personagem de Paul Giamatti sempre com frieza e desprezo.

Este, porém, não é um problema isolado das subtramas, mas também uma falha existente no próprio núcleo da história: o arco dramático da protagonista. Inicialmente uma mulher chata e irritante, Travers passa a se tornar mais tolerante à medida que a história transcorre, como se tivesse aprendido algo ou simplesmente crescido como pessoa. O problema, no entanto, é que o filme não apresenta razões críveis para essa mudança; ela parece chegar a essa “iluminação” sozinha, como se tivesse encontrado algo dentro de si ou de seu passado que a fez evoluir. Trata-se uma solução que não funciona em termos narrativos, uma vez que o espectador não acompanha a jornada e, consequentemente, encontra dificuldades para se importar com ela.

Claro que, para isso, também contribui o fato de que a P.L. Travers vista em Walt nos Bastidores de Mary Poppins é, para não dizer outra coisa, uma pessoa odiosa. Arrogante, grosseira e intratável, a protagonista não demora para conquistar o ódio da plateia, que percebe logo nos primeiros minutos ter diante de si a dura tarefa de acompanhar por duas horas a história de uma personagem que talvez não merecesse nem dez minutos de atenção. E nem os roteiristas, nem Hancock e muito menos Emma Thompson conseguem fazer de tal característica de Travers algo divertido; pelo contrário, ao invés de risadas, a vontade que fica é a de ensinar uma lição a ela. Cenas como a de Travers jogando peras na piscina, ignorando completamente o fato de estar em um hotel, ou as inúmeras passagens nas quais teima com pequenos detalhes do roteiro (como o uso da cor vermelha) não surgem como momentos de comédia, mas de pura irritação – tanto para os demais personagens quanto para a plateia.

Se Thompson jamais consegue usar seu talento para superar a forma como sua personagem foi escrita, nenhuma outra escolha, por outro lado, seria melhor que a de Tom Hanks para o papel de Walt Disney – ao menos, para a versão idealizada de Disney apresentada em Walt nos Bastidores de Mary Poppins, já que o filme passa longe de abordar questões como os alegados machismo e antissemitismo do criador do Mickey. O ator empresta sua reconhecida figura adorável, de gente boa, para acrescentar uma aura positiva e magnética ao personagem, justificando o respeito e a adoração todos têm por ele. Alguns dos melhores momentos do filme existem especialmente graças à qualidade de Hanks, como a conversa na casa de Travers, uma cena que tinha tudo para soar artificial, mas que transmite verdade unicamente graças ao talento do ator.

Não que Tom Hanks seja o único elemento que se salva em Walt nos Bastidores de Mary Poppins. Acompanhar o processo criativo – especialmente de um clássico do cinema – é sempre interessante, por exemplo, e o filme ainda aborda questões que podem gerar reflexões, como o embate entre integridade artística e a busca pelo sucesso/dinheiro. Da mesma maneira, o roteiro busca trazer motivações para as ações dos personagens e apresentar conflitos dramáticos, pessoais, para transformar aqueles personagens em pessoas de carne e osso. O problema é que a grande maioria desses elementos é tratada de forma simplista, sem densidade ou sentimentos verdadeiros, com uma superficialidade que pode até gerar lágrimas em um ou outro, mas jamais encontra ressonância emocional junto à plateia. É o caso, por exemplo, da tentativa de suicídio de um personagem – uma cena forçada, exagerada e inverossímil entre as muitas oferecidas pela produção.

Assim, por mais que tenha bons momentos isolados, Walt nos Bastidores de Mary Poppins poucas vezes soa verdadeiro, mesmo sendo baseado em fatos. A estrutura previsível e claudicante, as relações artificiais e a direção pesada de Hancock resultam em um filme irregular, piegas, típico desta época do ano. E, pelo fraco desempenho da obra nas premiações, é possível dizer que, desta vez, felizmente, pouca gente foi enganada.

Comentários (2)

Raphael da Silveira Leite Miguel | terça-feira, 18 de Março de 2014 - 23:38

Até hoje eu lí exatamente ao contrário no que diz respeito às atuações, com Hanks discreto e Thompson muito bem, diziam até que ela tinha direito à uma vaga no Oscar por sua atuação.

Quanto ao restante da crítica, ficou muito boa, bom saber que é o mesmo diretor de Um Sonho Possível, e pelo visto, está usando os mesmos artifícios pra fazer chorar que usou naquele filme, porém sem muito sucesso pelo visto.

Natacha Alana | quarta-feira, 19 de Março de 2014 - 00:08

o que mais me irritou nesse filme é a forçação de barra para o espectador cair no choro

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