Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Sang-soo e a bagagem de imagens.

8,0
Quando aparecem os créditos de Vocês e os Seus, resta uma impressão muito forte: Sang-soo é um mestre do cinema contemporâneo. Ano após ano, seus filmes demonstram um pleno controle e domínio de misé-en-scene, de forma que, amadurecido de tal maneira, pode radicalizar suas narrativas o máximo que pode. Sem medo de testar novas ideias do cinema contemporâneo de forma cada vez menos intensa, sem nunca abandonar o estilo que lhe é singular: os longos planos-sequência, o reenquadramento através do zoom no lugar da montagem, a valorização intensa e exclusiva do diálogo naturalista e a construção de uma estética de ficção que despreza a tradicional gramática cinematográfica.

As potencialidades de suas narrativas são exploradas a nível estrutural cada vez mais intensamente, não mais lidando com construções espaciais e temporais de formas tradicionalistas, miméticas, que visam esconder o narrador. Se seu predecessor Lugar Certo, História Errada tomava a liberdade de contar a mesma história duas vezes criando o predicado que para rir e se tornar empático com a segunda seria preciso conhecer a primeira, Vocês e os Seus trabalha a mesma noção sob outra construção. 

O leit-motiv, espécie de repetição cômica de diálogo ou situação, é utilizado aqui sob o propósito de enxergarmos o narrador, compreendermos o seu ponto: quando o controlador Youngsoo briga e dá um tempo com a namorada Minjung por causa de seus episódios frequentes de bebedeira e brigas, acompanhamos a busca do homem pela mulher através da cidade enquanto vários homens encontram sua doppelganger (ou sósia) bebendo em bares e a confundem com a personagem que então some na narrativa para que então só tenhamos a sua reminiscência. 

Em um ato de dramaturgia comparado a uma antítese do clássico de Luís Buñuel Esse Obscuro Objeto do Desejo, onde mais de uma atriz interpretava a mesma personagem, ainda temos a presença da atriz, mas a personagem Minjung em si esvanece depois do início, só aparecendo em um devaneio do protagonista. De resto, só temos a mulher igual a ela mas que afirma de maneira veemente não ser ela. Nunca sabemos se são uma sósia, duas sósias, se é uma brincadeira da mesma levada a sério. 

Então confirma-se que sim, o narrador é evidenciado para nós quando nos recusa a dar resposta, repete o ato de constrangimento de tomar uma mulher pela outra e repetir o ritual do flerte de sentar ao bar, tomar cerveja, fumar e falar sobre relacionamentos, sexo e trabalho, com direito a um tradicional inclusive personagem cineasta/estudante de cinema que aparece em todas as suas obras de maneira quase anedótica; são eles quase sempre os principais ou ao menos primeiros catalisadores das brincadeiras estruturais que apresentemos. 

Uma interpretação de certa maneira é que cada homem tem sua história com Minjung em um passado nunca filmado e com sua sósia, logo depois da confusão feita, tentando repetir um presente livre dos erros do passado. O homem que a diz ter visto Minjung bebendo e arrumando briga acaba bebendo com a doppelganger, flertando com ela e tendo uma relação breve; o homem que diz ter se embebedado com Minjung em uma comemoração há alguns anos tenta recomeçar com conversas e passeios, ao invés do hedonismo. Com as sucessivas confusões causadas pela língua venenosa de um amigo fofoqueiro, Youngsoo acaba, além de terminar com a primeira, entrando em rota de colisão inevitável com a segunda. 

De maneira que recusa maiores psicologismos - seus protagonistas, por vocação, são tão confusos quanto a sua própria dramaturgia - o filme abre espaço para a interpretação que conhecendo Minjung primeiro, temos um horizonte de expectativas, um esboço de personagem a ser construído na nossa cabeça - tentando parar de beber, enfrentando julgamentos da sociedade, tendo um relacionamento difícil. A próxima vez que nos encontramos com ela, não é mais Minjung, mas ainda a encaramos como Minjung. 

Não sabemos em quem confiar: na opinião dos amigos de Youngsoo, ela é uma bêbada irremediável; nos delírios de Young Soo, uma namorada compreensiva e que perdoa e com estranhos que acham que a conhecem no bar, uma pessoa totalmente nova, com outra personalidade, sem as mesmas certezas, com novas ideias. Os homens do filme creem, assim como o espectador pela sua bagagem imagética, estar sempre encontrando a mesma mulher; mas estão a cada sequência encontrando uma mulher nova, que não conhece o homem anterior, desconhece a bagagem e a memória de imagem que eles trazem e tem como único interesse e desejo uma nova cena, uma nova relação dramatúrgica, um novo gancho dramático. 

Sob esse sentido, são esses relacionamentos os personagens do cinema clássico, desejos de entrar e sair de uma aventura com personagens arquetípicos já preeestabelecidos. Seus conflitos são com os personagens contemporâneos, aqueles defendidos por Sang-soo. Eles existem acima das histórias. Eles existem em função da intenção do narrador. Eles não tem objetivo ou propósito definidos antes que comecem a história. Não tem caráter (no sentido de character, construção de personalidade como um contorno, um desenho fechado). Eles estão em constante reinvenção justamente pelo cinema contemporâneo ser, assim mesmo, vagante, errante, recusando a inferência de propósito ou a designação de sentido. 

No final, feliz é o personagem que consegue fazer a transição do deve ser assim para o pode ser assim, pois a dramaturgia dos tempos atuais e o cinema de Sang-soo lidam antes com possibilidades de contação de história, na variação, na repetição, na destruição. Ninguém possui identidade em senso estrito porque todos são fluidos, todos podem ser muitos, todos são fluxos errantes de eventos. 

E esse é o paradigma ou precedente que o cinema contemporâneo e suas novas dramaturgias abriram: ora, Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, mal tinha uma história antes de ser um recorte de lembranças desordenado onde os personagens ora estão juntos, ora estão separados, sem progressão psicológica; em Berlin Alexaderplatz o protagonista Franz Biberkopf é honesto, criminoso, fascista, socialista, perpetrador e vítima das circunstâncias, trágico, cômico e grotesco ao mesmo tempo; nas docuficções e no cinema de fluxo, em gente como Pedro Costa, Naomi Kawase, Apichatpong Weerasethakul e outros, a câmera apenas observa a frágil linha entre ficção e registro, sem progressão ou avolumamento, mas uma testemunha que interage de maneira frequente. 

É um brechtismo, por assim dizer: o dramaturgo alemão Bertolt Brecht influenciou muito do pensamento dos cinemas novos, dos movimentos contemporâneos e dos pós-cinemas: revelo minha condição artificial, exponho a estrutura da minha criação, me revelo e intervenho como o artífice e lanço o incômodo que propus com isso para aquele que me assiste resolver, completar minha intenção; outro aspecto desse paradigma que o impede de ser fechado e dogmático é, justamente, ser dialético.

Hong Sang-soo consegue, portanto, conferir à teoria dos autores a volta de seu significado político, pois seus filmes são elaboradas provocações estéticas criadas para desconstruir e instituir como o único regime a dúvida. Seu cinema é extremamente pessoal, com seus personagens típicos, seus cenários de hábito, seus conflitos de costume; mas dentro disso, ele desencava uma liberdade contemporânea no modo de se fazer cinema que coloca seu nome na vanguarda dos filmes ditos “alternativos” e “de festival”: com vagas raízes em um passado igualmente pouco conservador, abraça um futuro de composição cinematográfica ainda a ser explorado, descoberto e passível de influência em novas percepções de filme.

Comentários (0)

Faça login para comentar.