8,0
Um dos muitos méritos da Pixar é conduzir narrativas que nos arremessem direta e profundamente para um lugar interno de conforto e aconchego. Toda vez que seu universo se instala na tela, algo relacionado à nossa formação emocional é acionado que vai para além das qualidades técnicas (sempre indiscutíveis) e a partir desse jogo de reconhecimento afetivo é que seus longas costumam construir suas bases, raramente falha. A memória é o produto base da série Toy Story, de Wall*E, de Divertida Mente, da cena-chave de Ratatouille, do ponto de partida de Up! - Altas Aventuras, e volta a criar raiz aqui nesse novo lançamento, um ousado produto visando o mercado internacional latino que poderia ser rechaçado dentro e fora dos EUA e acabou se transformando em novo hit da produtora, e um formidável recordista no México que serve de palco para o longa, uma nova análise pelo terreno das memórias a assentar lugar cativo no terreno particular das lembranças.
Tendo como pano de fundo a comemoração do Dia de Los Muertos mexicano, uma festa alegre e comemorativa do respeito que o povo de lá tem por seus ancestrais, esse pano de fundo começa a propositadamente crescer até a história narrada por Miguel se entrelaçar de vez com a festa local e ser palco da trama do filme, que a princípio caminhava paralelo. Mas o roteiro de Lee Unkrich, Adrian Molina (os diretores) e Matthew Aldrich constroi situações muito em clima de efeito dominó, com encaminhamentos perfeitos, situações interligadas e diversos ganchos durante a história, nos prendendo a cada novos 5 minutos. Unkrich já foi premiado pelo clássico Toy Story 3 e, com a ajuda de Molina, invade as cores, o respeito e a alegria da mais importante festa coletiva no país. O olhar de encantamento para o novo seria difícil de não ser reproduzido, tendo em vista os aspectos estrangeiros àquela situação, e o filme resolve isso apresentando um protagonista como Miguel, um garotinho cujo sonho era ser cantor mas foi proibido da atividade pela família, o que permite a ele o mesmo ar de estupefação que o público, rumo ao desconhecimento ainda que maravilhado.
Miguel tem um cantor local já falecido, Ernesto, como guia e referência musical, e ao tentar pegar seu violão emprestado para tocar num concurso nosso pequeno herói é enviado para a Terra dos Mortos, uma cidade paralela que serve como moradia dos espíritos. Para escapar desse lugar, Miguel terá de convencer um novo parente que ele nem sabia da existência a dar uma espécie de indulto de volta a ele. Antes disso, a amizade com o também músico Hector será a base da trama nesse lugar ao mesmo tempo coloridíssimo e sombrio em suas sutilezas. E o filme é regido pelo apreço à árvore genealógica e pelos sentimentos familiares fortes que no México são uma espécie de esteio a qualquer um, ao mesmo tempo que tenta criar e desenhar esse conceito nesses tempos de construções desfuncionais e desprendimento das nossas bases. É nessa captura de atenção que o filme mergulha todo o público, incluindo sutilmente uma discussão sobre laços afetivos e sanguíneos que podem caminhar lado a lado ou também misturados. Valores hoje praticamente perdidos, e se pensarmos por esse lado, é a Pixar mais uma vez fazendo um trabalho de resgate de sentimentos conflituosos com quem veio antes de nós.
O estranho a perceber nessa incursão é o ritmo, que varia entre o eletrizante (como sempre) e o decepcionante, numa situação surpreendente para eles. A duração de Viva! nem é esgarçada, mas o filme falha ao manter o interesse durante toda a projeção. Ou melhor, não há pontos mortos ou aquela reconhecível 'barriguinha', mas um acúmulo de situações redundantes em cena, numa quantidade suficiente de situações mas que poderiam ter sido abreviadas, pois acabam se tornando excessivas, numa espécie de redundância narrativa. Se não atrapalha o todo, ao menos dá a clara impressão de passar mais tempo do que o devido. Interessante é notar que o filme tem um número bem elevado de personagens, e o filme acaba distribuindo bem seu campo de importância entre tantos, permitindo personalidade a um grupo tão abrangente. Esse equilíbrio até entre típicos defeitos de uma produção só seria possível dentro de um sistema de produção tão cronometrado quanto o de uma animação, cujo tempo de produção é grande o suficiente para que todos os defeitos sejam minimizados, algo mínimo dentro do padrão de qualidade particular da Pixar.
O que acaba mais uma vez elevando o produto é a questão inicial levantada, o apreço à memória como mote de suas tramas. Tem uma situação pela qual os mortos e os vivos do filme lutam contra em conjunto, o esquecimento. Talvez a real morte resida exatamente nessa questão, em ser esquecido e em como evitar eventos que nos levem a tal. A personagem-chave do filme é a bisavó de Miguel, a Coco do título original. Com a idade mais do que avançada, Coco já foi além no Alzheimer e não consegue mais lembrar dos seus; seu pensamento só não apaga seu 'papá', que abandonou a pequena Coco. Esse trauma permeia toda a duração e vai encontrar reflexo da própria história de Miguel e mais uma vez eleger a memória como cerne entre eles, que junto ao esplendoroso colorido que o filme apresenta e a forma delicada como apresenta um tema tão duro a um público tão diversificado, acabamos compreendendo sucesso acachapante do filme até dentro do México, numa iniciativa de atrair o público retratado e acaba universalizando a pureza de relações ancestrais e os laços que desafiam as passagens de todos nós.
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