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Críticas

Cineplayers

Em busca do silêncio

5,0

Ultimamente tenho percebido que a produção cinematográfica nacional tem por muitas vezes abdicado de um profissional que muitas vezes emoldura um filme, pontuando a narrativa com a emoção necessária: o compositor de trilha-sonora. Um trabalho acertado da área não explicita suas intenções nem induz o espectador, apenas sublinha sutilmente sua condução. Atualmente, o cinema brasileiro tem optado por um viés naturalista, o que geralmente significa abrir mão de composições criadas especialmente, preferindo muitas vezes apresentar uma canção de conhecimento pop que justifique-se em cena; é uma opção, e essa no geral é uma decisão acertada. Acompanhando o Cine PE pelo terceiro dia, vejo que os longas apresentados até agora tem preferido a tradicional utilização e composição de trilha sonora, no qual o filme Vidas Descartáveis incorre e, assim como os anteriores, a escolha demonstra ser não apenas equivocada, como exagerada. E talvez esse seja o maior problema do filme.

Questão apresentada, precisamos observar a ousadia dos diretores Alexandre Valenti e Alberto Graça em trazer um recorte tão aprofundado sobre um tema ainda absurdamente atual, a escravidão. Tentando sustentar todos os lados da moeda, desde o empregado até o empregador (obviamente que nenhum dos procurados se expôs, mas o filme deixa claro que houve interesse em criar o contraponto, ainda que seja indefensável), passando por todos os responsáveis por jogar luz nesse crime que ainda hoje é cometido no Brasil sem grande reverberação. Do campo e dos cativeiros mantidos em fazendas até a importação de mão de obra escrava por grandes varejistas da cidade grande, passando por audiências onde o trabalho análogo a escravidão é exposto em busca de condenação, o filme monta um mosaico abrangente sobre seu assunto que amplia o mesmo progressivamente, sempre abrindo novas portas de discussão e de choque, conforme apresenta seus argumentos.

Como a maior parte do que compõe o filme são depoimentos das vítimas e dos tantos profissionais que lutam para trazer a tona esse horror ancestral que insiste em não ser aposentado, o grande mérito da direção é filmar com sobriedade as falas de cada personagem sem interferir e deixando a própria inocência de cada um deles transmitir o horror de suas situações. São homens do campo e mulheres da cidade que foram enganados, mantidos reféns na maioria das vezes, com o qual foi feito todo tipo de terrorismo psicológico, além das próprias tentativas de assassinato cometidas contra essas pessoas. Ainda que a secura desses relatos seja constantemente entrecortado pela ruidosa trilha sonora, entre esses rostos marcados e a câmera existe uma conexão que dilui essa iniciativa medrosa da produção de aumentar o tom de um assunto que já é alto por excelência, e que abriria mão da agudeza em nome da qualidade do silêncio.

Um recurso que tem sido utilizado em demasia pelo cinema (principalmente o documental) é a constância do drone para cenas aéreas, com resultados cada vez mais inertes e repetitivos. Essa no entanto é uma questão maior que a esse filme em particular, mas um ponto nevrálgico que invadiu qualquer cinematografia, aqui chegando ao cúmulo de utilizá-lo até na altura dos olhos, inexplicavelmente. Apesar de não inovar tecnicamente e entregar um filme básico do ponto de vista da construção da estrutura, há uma força nas palavras das vítimas que transforma a experiência. Quando os advogados e políticos invadem o campo das ideias no filme para contribuir com a pesquisa narrativa, o filme ameaça escorregar mas aos poucos a força é retomada, mostrando o talento para montar o quebra-cabeças que o filme apresenta.

Os problemas que poderiam ser evitados são mantidos até o fim, o que demonstra a insegurança dos diretores para com o público, ao não confiar no poder do mesmo o poder de pontuar o filme com sua própria emoção particular. Mas sobrevive com méritos o material humano conseguido pela produção, submetido ao horror e que pode rechear o filme com a genuína humanidade que lhes tentaram tirar, e que o próprio filme não confia em lhes conferir durante todo o tempo. 

Filme visto no Cine PE 2019

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