Uma das grandes adaptações de literatura para o cinema da Era de Ouro de Hollywood.
“Grande literatura não rende grande cinema.” Esta frase de efeito é um bom exemplo de argumento que críticos de cinema tendem a usar quando o objetivo é desdenhar de uma adaptação de algum clássico da literatura. Tem utilização mais freqüente do que se possa imaginar – aliás, foi assim com essas palavras que alguns se referiram ao filme Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness) de Fernando Meirelles em sua estréia no Festival de Cannes. Obviamente não se pode levar uma afirmação dessas a sério – afinal, como dizia Nelson Rodrigues, “toda generalização é burra”.
Concordar com isso é negar a idéia de que a trilogia Senhor dos Anéis tenha qualidade, ou pior, questionar a literatura de Tolkien. É negligenciar todos os grandes filmes que tem roteiro adaptado – e se o são, é inegável dissociar a qualidade da película a da obra original. E, em última instância, é subestimar alguns dos melhores diretores da história do cinema que tiveram suas carreiras basicamente sustentadas por adaptações de grandes livros – e entre estes diretores é impossível esquecer-se de David Lean. Um de seus primeiros longas (Grandes Esperanças) é uma adaptação de Charles Dickens; Doutor Jivago, um filme de valor inquestionável (embora gente do calibre de Roger Ebert faça pouco caso), é baseado no romance homônimo de um dos maiores nomes da literatura russa, que é o de Boris Pasternak. E, é claro, Lawrence da Arábia, que é a adaptação do livro de T. E. Lawrence “Os Sete Pilares da Sabedoria”, título que, aliás, faz referência a uma passagem da Bíblia (Livro dos Provérbios - IX,1).
Porém, de todos os exemplos de grande literatura que se traduziu em grande cinema, um dos que mais valem a pena serem assistidos e estudados é o de Vidas Amargas (East of Eden), ao qual este artigo se dedica. Baseado no bestseller “A Leste do Éden” do escritor americano John Steinbeck, o filme, que além de também ter um título que faz menção a um trecho bíblico, tem a direção de um dos mais emblemáticos diretores de cinema (e principalmente de atores) que é Elia Kazan e é o primeiro longa-metragem a trazer James Dean para um papel de destaque.
O filme concentra-se na trama familiar que envolve os irmãos Cal (James Dean) e Aron (Richard Davalos), filhos de Adam (Raymond Massey) e de Kate (Jo Van Fleet), mãe cujos filhos cresceram acreditando que estaria morta, até que Cal descobre que está viva e em um lugar próximo. Para o pai, fazendeiro, católico fervoroso, turrão e dominador, Aron é o filho bom, enquanto Cal é o filho mal, pois este lhe representa a imagem da mãe, mulher que abandonou a família para se livrar de uma vida restrita em um sítio, para ganhar a vida tendo seu próprio negócio – um prostíbulo em Monterey, distante apenas alguns quilômetros de Salinas, pacata cidade onde o rancho se localiza. Tudo isso em uma América rural de 1917, prestes a entrar na Primeira Guerra Mundial.
Não por uma mera coincidência, os nomes são semelhantes aos personagens bíblicos de Adão e seus filhos Caim e Abel, história presente no livro de Gênesis, de onde justamente o filme tira o título. Na Bíblia, Caim, enraivecido de ciúmes por seu pai preferir as oferendas de Abel às suas, mata o próprio irmão. As referências bíblicas e principalmente a lenda de Caim e Abel (presente em Gênesis – IV) vão muito além dos nomes dos personagens, e permeiam todo o livro e o filme de forma surpreendente. E o “climão” de tragédia shakesperiana eminente inunda toda a fita.
Há ainda, além destes personagens, o importante papel de Abra, a namorada de Aron interpretada por Julie Harris, que, não obstante, ainda gerará um triângulo amoroso entre os irmãos. Ao mesmo tempo em que se associa a bondade e pureza de caráter de Aron, sente-se instigada e atraída por Cal, sujeito que representa tudo o que ela rejeita em si mesmo: sensualidade e inconformismo. A maioria do elenco de Vidas Amargas é composto por atores experientes do teatro e da Broadway. E neste filme é Julie Harris que traz toda essa bagagem e técnica de atuação, interpretando a jovem inocente que contracena com James Dean, sendo a atriz sete anos mais velha. Seu trabalho neste longa é indispensável como um mediador das relações conflituosas dos personagens – e, como se soube posteriormente, inclusive dos atores.
Mas a grande estrela do filme é, sem dúvida, James Dean. Vidas Amargas é o primeiro filme da carreira de James Dean em um papel relevante, pois já havia realizado pequenas participações como em Sinfonia Prateada, atuando pela primeira vez ao lado de Rock Hudson - parceria que se repetiria em Assim Caminha a Humanidade. Kazan titubeava em colocar Dean para o papel de Cal, pois não teria gostado daquele jovem pouco articulado, um tanto desengonçado, pouco comunicativo e, em certa medida, mal encarado. Apesar da má impressão inicial, acreditava que ele era o melhor para o papel, e, ao apresentá-lo para o seu amigo e autor do livro o qual o filme se baseia, coube a Steinbeck dizer: “Não gosto dele, mas Dean é perfeito para o papel”. Este seria o primeiro de apenas três filmes que compreendem a curta filmografia de Jimmy. Sua carreira meteórica duraria apenas 16 meses.
Por vezes o modo de atuação de Dean é bastante criticado, e já foi dito até que, caso tivesse sobrevivido, provavelmente teria sido esquecido. É uma especulação pouco provável, uma vez que em Vidas Amargas ele personifica um inédito tipo de personagem característico de um tempo onde finalmente era criada uma cultura jovem – e Dean seria seu eterno protagonista, um ícone pop imortal. A famosa imagem de Dean com olhar cabisbaixo trajando camisa e pulôver neste filme é provavelmente seu registro visual mais lembrado e utilizado. E Vidas Amargas contribuiu muito para a solidificação do mito. Sua atuação neste filme lhe rendeu sua primeira indicação ao Oscar – que é conhecida por ser a primeira indicação póstuma da premiação.
Elia Kazan, assim como nos trabalhos anteriores Sindicato de Ladrões e Uma Rua Chamada Pecado, exerce total domínio dos atores e de sua forma de atuação. Marlon Brando diria, em entrevista à revista Playboy em abril de 1979: “Kazan é o melhor diretor que se possa querer. E é capaz de compreender coisas que os outros diretores não compreendem. Kazan é um dos poucos diretores suficientemente criativos e compreensivos para saber até onde um ator está tentando chegar”. Neste filme, o protagonista vive um grande conflito com o pai, assim como o próprio Kazan viveu com o seu na vida real. O diretor tomou conhecimento de que as implicâncias entre Cal e seu pai Adam iam além dos personagens, ou seja, havia uma tensão entre os atores, entre Dean e Raymond Massey. Kazan habilmente fez potencializar esse atrito em benefício do filme – oferecendo ainda mais realismo às cenas regidas pelo maior seguidor do método de atuação de Lee Strasberg, Stella Adler, Constantin Stanislavski e companhia. O triunfo de Kazan se fez notar no filme sobretudo diante da imponente e durona Kate, personagem que deu a Jo Van fleet o Oscar de atriz coadjuvante.
Além da desavença familiar de proporções bíblicas, o filme ainda aborda algumas questões sociais e filosóficas importantes. A película ganha novas nuances a partir da entrada dos EUA na Primeira Grande Guerra, ao focar a recusa ao alistamento por Aron e o preconceito da população contra o sapateiro alemão, que acaba tendo seu estabelecimento depredado (o que faz lembrar o que vivenciou o barbeiro judeu de O Grande Ditador, de Charles Chaplin). A dada altura do filme, uma outra questão vem à tona: Quem é verdadeiramente o bom e o mal? Aliás, o que é, de fato, o bem e o mal? Uma vez que estamos sendo apresentados ao enredo por meio da visão de Cal, aquele que é tido como mal, entendemos que ele não o é exatamente como tachado por seu pai, e sim um jovem confuso e mal-compreendido diante das contradições, mentiras e valores questionáveis a partir dos quais sua vida foi construída.
Kazan não é necessariamente reconhecido por ser um grande cineasta no sentido estético-visual – assim como foi David Lean, mas pelo primor das atuações sob sua batuta que influenciaram todo o cinema a partir de sua obra. Mas Vidas Amargas tem uma plasticidade muito interessante, é um filme com uma fotografia bastante “verde” como diriam alguns críticos e o que é mais notável neste filme nesse sentido são os ângulos tortuosos de câmera nos momentos de maior tensão nos diálogos entre Cal e Adam.
Vidas Amargas detém a fama de ser um dos filmes de venda para o estúdio mais fácil da história do cinema. Kazan teria persuadido Jack Warner em apenas poucos contatos, em parte devido a grande estima que o autor da obra a ser adaptada tinha. À época, John Steinbeck ainda não havia ganhado o Nobel, mas já era tido como um dos mais importantes escritores realistas da literatura americana, notável pela alcunha de “cronista da depressão”. Muitas vezes descrito como “sociólogo da literatura”, um “documentarista dos horrores da vida”. Um dos poucos com a ousadia de se debruçar sobre a fragilidade do sonho americano.
Uma curiosidade interessantíssima deste filme é que ele estampa a capa do último álbum da seminal banda The Smiths. No disco “Strangeways, Here We Come”, de 1987, há uma imagem manipulada enquadrando em close o personagem Aron enquanto fita seu irmão. Outra imagem de Richard Davalos atuando no filme também é utilizada na arte da coletânea em CD e DVD “The Smiths – The Best Of”. Mais uma prova de que, com grande literatura não só se fazem grandes filmes, como obras imortais.
Mion, deveria fazer a crítica do filme \"Assim Caminha a Humanidade\", para fechar as atuações de James Dean!
😁