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Vida Invisível, A

(A Vida Invisível, 2019)
8,1
Média
104 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

À flor da pele

8,5

As cenas iniciais de A Vida Invisível já sugerem perda e desaparecimento, a partir de recorte entre as irmãs Euridice e Guida Gusmão, unidas pela juventude, pela cumplicidade, pela semente da transgressão que não ousa dizer seu nome. No caminhar por um bosque que se fecha conforme o desespero adensa, as irmãs começam sua saga de afastamento mútuo através dos tempos, motivadas por decisões alheias à sua própria vontade. Karim Aïnouz, seu diretor e autor, define seu novo longa como um melodrama tropical, e sua alcunha não poderia ser mais acertada, embora as camadas iniciais não revelem essa característica novelesca; muito pelo contrário. De deslanchar onírico com grande influência em uma espécie de surrealidade naturalista, o longa parte de um universo em expansão de sensações e experimentos, tanto em linguagem quanto em visceralidade, centrando a violência de seu enfoque na explosão libidinosa na tela.

É como se a cada fotograma Karim clamasse por liberdade, de todos os sentidos. De expressão, de gênero, de desejo, de empoderamento, uma grande observação sobre as liberdades individuais e coletivas pelo qual buscam as mulheres há cerca de 70 anos, ao acompanharmos sua família e os caminhos independentes que elas constituem a partir de determinado período. Essa liberdade tá na pele exposta, tá na boca que chupa uma fruta, tá no despojamento cênico experimentado e que joga aquelas relações humanas para além de um naturalismo convencionalizado; em cena estão abordados muito mais os erros do que os acertos, de inúmeras naturezas. Mas também nesse lugar cabe o processo libertário desejado por mulheres e filmado aqui com volúpia e com assertividade. É como se Euridice e Guida representassem duplos, um vulcão e a lava expelida pelo mesmo. Vetor da ação e agente da ação; uma deseja e a outra realiza os desejos.

Esses pontos são apenas alguns que tornam a primeira metade de 'A Vida Invisível' tão impactante, porque ele é repleto de um olhar sensorial sobre o cotidiano, milimetricamemte incumbido sem jamais parecer artificial. Existe dança no filme, existe dramaturgia potencialmente explosiva, mas existe uma mão acurada sobre o resultado imagético-narrativo alcançado, com seus esforços fazendo sentido no terreno da poesia e da sugestão. Aos poucos o melodrama começa a ser homenageado por direção de arte, figurino e roteiro mais diretamente, desenvolvendo características de apelo mais popular à narrativa. É uma escolha deliberada da produção, não existe um escorregão nesse sentido, e igualmente nesse sentido o filme consegue criar comunicação, bebendo de um humanismo tão arraigado no real para provocar ruídos tanto no tomo inicial alegórico quanto na atualização de códigos do melodrama, se encontrando ambos num lugar híbrido. Essa composição também é ajudada pela trilha de Benedikt Schiefer, que desenha à perfeição os elementos de dois polos que se comunicam, mas que talvez ela mesma seja a responsável por unir.

Adaptado de um livro de Martha Batalha, 'A Vida Invisível' obviamente versa sobre a descoberta do empoderamento de maneira extremamente delicada e quase nunca panfletária, ainda que todos os homens do filme fossem uma prova e uma exatidão da incompreensão e do perigo. Em atitudes bélicas como a do pai das protagonista, invasivamente atrapalhadas como as de Antenor ou grosseiras e violentas como a de praticamente todos os outros homens, ficam objetivas as opções narrativas tanto do romance quanto do longa, em denunciar um patriarcado histórico e que infelizmente ainda assolam a realidade. Em sequências que explicitam a violência intromissiva dos personagens masculinos - a decisão e o silêncio do pai permeando todo o roteiro -, o filme estabelece seu padrão de ambientar no passado observando o hoje, com ao menos duas cenas de intercurso sexual que beiram o ridículo, a primeira delas talvez dos momentos mais emblemáticos da carreira de Karim, não por seu teor, mas pela elaboração e configuração dos planos, um balé acrobático patético que resvala em uma forma das mais comuns de estupro em relações de dominação doméstica, provocando um misto de sensações. Nenhuma agradável.

Uma espécie de biografia fantasiosa, no que concerne ao processo longo do tempo percorrido em cena típico de padrões biográficos, 'A Vida Invisível' se aproxima do público pela relação tátil entre os personagens. Há uma busca contínua no que se filma pelo toque, pelos cheiros, pelos poros, são mãos e fluídos e lágrimas, todo o processo de imersão na obra depende da aceitação individual sobre como aquelas vidas tocam cada um; subjetivamente, a obra de Karim sempre dependeu dessa chave, mas a partir desse novo filme se abre um pedido mais específico sobre isso, de acordo com os não-ditos que são muitos. É o olhar, que uma irmã captura da outra, do qual Carol Duarte e Julia Stockler empreendem uma ponte indissociável entre si e com o público - a relação entre ambas é palpável e rica, uma interpretação depende da outra, mas ao mesmo tempo traçam caminhos específicos em pontos distanciados, de busca paralela intensa. Cada uma em seu espaço, porém o desafio a Carol é mais intenso, correspondido por ela com exatidão, demonstrando uma força cênica impressionante; ok, talvez a contradição disso com a leveza mascarada de Julia seja o resultado do todo.

Importante ressaltar a potência do elenco como um todo no sentido de grupo. Barbara Santos e Maria Manoella representam a altivez e a nobreza de uma certa cepa de mulheres da época retratada, que evoluíram com força interna e externa aos percalços do ser feminino per se, em performances impressionantes. Da lavra masculina, merecem destaque Gregório Duvivier e António Santos, marido e pai de Euridice, completamente absortos em lugares de machismo desbragado sem jamais perder a humanidade intrínseca daqueles tipos, desenhando sua corporalidade com bravura. A cereja do bolo é obviamente Fernanda Montenegro; o que dizer mais, quando tudo sobre ela já foi dito? Uma máquina de coração pulsante, que só precisa 'estar' para 'ser'. Sua aparição retoma em 'A Vida Invisível' o contato emocional que a agilidade do terceiro ato desmonta e é só Fernanda entrar em cena para todo filme rememorar seus sentidos.

Essa brusca correria prévia, e um certo apreço aos códigos mais arraigados do melodrama (sem a tropicalidade que Karim assegura durante boa parte do tempo) desequilibra levemente o todo, sem nunca arranhar o cômputo geral. O novo filme desse cearense é um clamor pela emoção empática das que tiveram suas vozes nunca ouvidas mesmo quando a berravam, mesmo quando a tornavam públicas. Mulheres em processo de invisibilidade são o tônus da obra em si, mas qualquer acesso minimamente cordial acessa esse filme exuberante de cores quentes e vivacidade ímpar (através da luz da espetacular fotógrafa de Lazzaro Felice, Hélène Louvart), quase 'almodovariana', mas com um sentido universal muito potente, uma joia de alcance múltiplo.

* Visto no 29º Cine Ceará, 2019

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