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Críticas

Cineplayers

Grande filme que conecta um momento histórico datado ao nosso momento cultural e econômico atual.

8,5

Filmes históricos têm a função primordial de colocar em debate para o grande público as especificidades da trajetória político-institucional de determinados países, sem, no entanto, o compromisso de cientificidade exigido por uma tese de doutorado ou de qualquer outro tipo de trabalho acadêmico. Embora os objetivos de ambas – arte e ciência – sejam semelhantes, ou seja, compreender o mundo à nossa volta, a arte deve dispor de uma liberdade de expressão e elaboração – não menos rigorosa, diga-se de passagem –, muito maior do que a ciência. Porque a arte deve emocionar, fazer pensar e refletir pelos caminhos do sensível.

Mais especificamente, a queda do muro de Berlim e as descobertas a respeito da organização social, econômica e política da antiga Alemanha Oriental surtiram um tal efeito de revelação e surpresa em grande parte do mundo ocidental que logo transformaram-se em matéria-prima audiovisual das mais interessantes para o cinema alemão. Curioso que esse movimento foi ampliado para outros momentos da história alemã, desde os mais debatidos, como o nazismo (vide o polêmico “A Queda”, de 2004, sobre os últimos dias de Hitler), até os menos conhecidos, como o ainda inédito “O Complexo Baader-Meinhof”, sobre as atividades terroristas no final da década de 60 do grupo Facção do Exército Vermelho, inspiradas por uma interpretação mais radical, espraiada pela Europa Ocidental do período, do movimento de Maio de 68.

Leste X Oeste

Em “Adeus, Lênin” (2003), a queda do muro de Berlim, aparentemente tão repentina quanto a chegada do capitalismo à Alemanha Oriental, foi tratada com humor e leveza. Como um filho poderia explicar para sua mãe, uma militante engajada da ex-Alemanha comunista, que, ao longo de seu tempo de coma, tudo havia mudado radicalmente? Criar uma ficção de Berlim Oriental como nos tempos do muro foi a alternativa encontrada, a fim de preservar a mãe doente das bruscas mudanças ocorridas a partir de 9 de novembro de 1989 (data do fim da separação entre a Berlim do leste e a do oeste). A qualidade maior de “Adeus, Lênin” foi saber compor o drama familiar, micro, dentro da mesma dinâmica de espanto que se abateu sobre a sociedade do antigo estado comunista alemão. E ainda por cima num tom sutil, entre a comédia e o drama.

Já em “A Vida dos Outros” (2006) – ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro neste ano – a abordagem é distinta, mais contida e sombria. O ano é 1984; a cidade, a mesma Berlim Oriental de “Adeus, Lênin”. A trama, porém, concentra-se sobre a atuação da Stasi, a polícia secreta da antiga Alemanha Oriental, a qual mantinha uma política agressiva de espionagem sobre todo e qualquer cidadão passível de representar a mínima ameaça para o regime de partido único. Um “Big Brother” institucionalizado na vida dos Ossis (como eram chamados os moradores da porção leste alemã). Tão institucionalizado a ponto de os próprios alemães orientais desconfiarem de seus vizinhos, familiares, ou de uma possível escuta em casa. Por vias das dúvidas, a fim de evitar problemas com a polícia, melhor fingir, representar na própria vida privada. Feito a casa do BBB.

Todavia, havia alguns cidadãos acima de qualquer suspeita, entre eles Georg Dreyman (Sebastian Koch), principal dramaturgo da então República Democrática da Alemanha, intelectual e artista envolvido com a causa socialista, e sua namorada Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck), a atriz de teatro de maior prestígio e fama nos palcos da Berlim do leste. Mas só em princípio. Até Georg e Christa entrarem na mira do capitão da Stasi, Gerd Wiesler (Ulrich Mühe). A seqüência em que isso ocorre é hitchcockiana em seus fundamentos: do camarote do teatro, Wiesler acompanha com um binóculo a atuação de Christa no palco, assim como as reações de Georg na lateral do fosso. Enquanto isso, a seu lado, um burocrata do partido comunista justifica os fios de suspeita a recair sobre os dois. Começa aí, informalmente, a vigilância do casal, inicialmente motivada pelo interesse de Wiesler a respeito de suas vidas. Logo em seguida, porém, esse interesse toma contornos de missão oficial, uma vez que um alto membro do partido, de olho em Christa, exige uma operação detalhada de escuta dentro do apartamento de Georg, com o intuito de descobrir qualquer motivo para tirá-lo do caminho. Assim, Wiesler entra oficialmente nessa missão, juntando obrigação a um interesse pessoal.

Matriz Hitchcockiana

Pode-se estabelecer um vínculo entre a forma de estrutura narrativa de “A Vida dos Outros” e a matriz de estilo cinematográfico presente na obra de Hitchcock. Não apenas devido ao mote do conflito dramático, movido pela missão de espionagem que se transforma em voyeurismo, e depois em cumplicidade, mas, sobretudo, pela sobriedade na direção dos atores, de modo a enfatizar o suspense no espectador a respeito de quem são realmente aqueles personagens. Por intermédio de atuações “underplayed” – isto é, contidas e sutis, um tom abaixo do convencional –, o quadro psicológico de cada personagem vai se configurando lentamente para o espectador. Dessa forma, o que parece ser não corresponde exatamente àquilo que de fato é.

À primeira vista, estamos diante de um escritor inabalável em sua crença nos ideais socialistas, de uma atriz de sucesso, segura e apaixonada, e de um oficial da Stasi, frio e implacável. Num ritmo tenso, sob uma fotografia densa e azulada, cada um dos três vai se modificando, despindo-se mais profundamente. Dreyman, o dramaturgo, torna-se crítico e cético em relação ao sistema; Christa-Maria, a estrela de teatro, frágil e insegura; e Wiesler, o espião, sensível e solidário.

Dois fragmentos do longa corroboram tal influência do mestre Hitchcock. Um deles refere-se à seqüência seguinte à primeira intervenção de Wiesler na vida de seus espionados, ao atrair Dreyman para a porta da rua, a fim de que este visse Christa saindo do carro do chefão do partido, admirador de sua namorada. Dreyman assiste à cena, entre surpreso e incrédulo; vira-se e sobre de volta ao apartamento; corte para Christa, que se recompõe antes de entrar; corte para a entrada dela no apartamento, indo direto para o chuveiro; corte para a água caindo sobre ela, estática; corte para a cama do casal, ela deitada, ele se aproxima, perguntando o que aconteceu; ela apenas responde “me abraça forte, por favor”, no que ele obedece. Sem a necessidade de uma discussão ou mesmo de diálogos, tanto Dreyman se dá conta do que está acontecendo, quanto Christa percebe que seu namorado já sabe do suposto caso dela com o alto funcionário do governo. Seqüência precisa nos cortes e super econômica na encenação e nas palavras – enfim, “underplayerd”.

O outro fragmento pode ser descrito mais resumidamente: trata-se da primeira seqüência na qual o espectador toma contato com o apartamento asséptico e gelado do Capitão Wiesler. Voltando à noite de seu dia de espionagem, ele é visto na cozinha, de longe, colocando uma espécie de ketchup ou extrato de tomate sobre uma massa branca – algo parecido com um jantar. Em seguida – não me lembro se num plano-seqüência, sem cortes –, ele dirige-se até a sala de estar, liga a TV, sintonizada numa espécie de documentário “oficialesco”, e senta-se sozinho no sofá. A cena termina com Wiesler de costas, solitário, com o prato no colo e o programa de TV ao fundo (a composição da imagem me remeteu à atmosfera dos quadros de cenas urbanas de Edward Hopper, de pessoas isoladas e sem rosto). Pra lá de “underplayed”, quase um não-atuar.

Na Sociedade do Espetáculo

“A Vida dos Outros” tem a grande qualidade de narrar um episódio historicamente datado, conectando-o ao momento atual do mundo econômica e culturalmente globalizado. O fenômeno do totalitarismo alemão-oriental, no qual havia, de fato e de direito, um “grande irmão” que tudo via e escutava, encaixa-se com perfeição no fenômeno da “espetacularização” da vida privada do momento social presente. Ambos são análogos: no primeiro, o estado formalmente autoritário impõe por meios explicitamente violentos a perda da individualidade e, portanto, dos valores de bem e mal; no caso da “sociedade do espetáculo” da atualidade, essa dissipação da individualidade também se dá, só que de forma velada, na medida em que muito da legitimidade social advém do olhar do outro. O carro dos ricos e famosos, as roupas dos artistas, a escova progressiva da atriz de novela, a casa e o quarto fotografados para a revista de celebridades, tudo isso opera como parâmetro de inclusão. E, para se incluir, vale tudo, esquecer ética e valores.

Nas duas situações, há mecanismos eficientes contra as demandas de exceção, isto é, toda e qualquer necessidade de um indivíduo de se diferenciar, de levar sua vida conforme seus desejos e parâmetros. É aí que o desfecho de “A Vida dos Outros” entra, demonstrando que essa possibilidade de exceção ainda existe, para aqueles com coragem suficiente para nadar contra a corrente. Pode ser o contato com a diferença, com a arte, ou um enfrentamento de seus desejos internos (ou tudo junto). Interessa que o resultado seja trilhar um caminho pessoal, único; tornar a vida em si – e apenas ela – a principal obra de cada um.

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