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Críticas

Cineplayers

Paisagem na neblina.

5,0
Em uma das imagens mais marcantes de A Vida Após a Vida, uma árvore robusta e de longos galhos nus sobrevive ao desmatamento de uma área rural chinesa. Mais do que a resistente espécie preenchendo o centro da imagem, o que imediatamente salta aos olhos são as barras de ferro fixadas em seu entorno, demarcando um pequeno espaço proibido de ser acessado pelos homens. Do lado de fora, um senhor e o corpo de seu filho, habitado pelo fantasma da falecida ex-esposa, observam a árvore. No debut do jovem Zhang Hanyi em longas-metragens, a China contemporânea é este universo decadente que beira ao surrealismo, no qual homens, fantasmas, árvores e animais dividem um mesmo e asfixiante espaço moribundo, coberto por cinzas e fumaças, que reflete as consequências do boom industrial desenfreado do país, nocivo tanto à vida humana quanto à natureza. 

Selecionado para a edição 2016 do Festival de Berlim e produzido pelo renomado cineasta Jia Zhang-ke, o longa filia-se à própria filmografia de seu produtor para narrar a margem deste progresso às avessas vivido pelo país, aproximando-se formalmente do cinema de outro oriental querido no Ocidente, o tailandês Apichatpong Weerasethakul. A co-existência de diferentes planos espirituais na imagem, os planos-sequência com raros movimentos de eixo, os corpos filmados à distância e longos tempos de silêncio e contemplação deixaram há muito de ser novidade – boa parte dessas características já estavam presentes, por exemplo, no longa de Theo Angelopoulos do qual o título do texto foi surrupiado, produzido ainda na década de 1980. E é inevitável pensar que ao reproduzi-los, e poucos meses após a estreia do belo Cemitério do Esplendor, longa em que Apichatpong, diante de seu retorno à cidade natal, também narrava as transformações do país através dos anos e às vias de questionável contexto político, o filme de Hanyi chega ao circuito para ocupar um pequeno espaço aberto por esses filmes, porém sem o mesmo talento.   

Na verdade, dois filmes parecem coexistir em A Vida Após a Vida – o primeiro, por sua vez, bem superior ao segundo. A cinematografia cuidadosa e a escolha das locações para a ambientação da história compõem um conjunto de planos de aspecto quase documental que registra a decadência dos espaços, sejam florestas, fábricas, vilas em ruínas ou áreas descampadas. O aproveitamento da luz e dos cenários é notável, potencializando a expressividade das paisagens invernais e transformando o filme numa instigante e bem fotografada coleção de imagens do interior do país, com suas pequenas comunidades vivendo um tempo natimorto, de clima gélido e expectativas sufocadas pela fumaça industrial das fábricas vizinhas.
 
Nesse sentido, a primeira metade do longa é especialmente forte, com algumas tomadas preciosas. Na principal delas, captada do topo de um morro, a câmera transita, a partir de um movimento panorâmico, da superfície de uma floresta para o topo de outra colina, transitando no percurso sobre residências e indústrias que exalam grandes quantidades de fumaça. Um esforço bem sucedido de mapear o espaço e grifar a conexão sugerida entre progresso e morte, industrialização e decadência na natureza, num plano ilustrativo tanto a respeito do comentário social quanto das intenções formais, compreendendo em si um panorama da variação de locações e da paleta de cores da obra.     

A superioridade deste e de alguns outros momentos em comparação ao restante evidencia o descompasso entre as virtudes de Hanyi como documentarista e suas fragilidades como encenador dramático. O que podemos chamar de segundo filme em A Vida Após a Vida, aquele conduzido pela trama ficcional e personagens, empenhado em narrar o drama de sua protagonista fantasma, que retorna através do corpo do filho para suplicar ao ex-marido um desejo final (transportar uma árvore da propriedade da família para outro terreno), existe mais como um rascunho ficcional de pouca ambição dramática, de frieza aparentemente intencional, mas que culmina numa sucessão de diálogos e ações inócuas - o que se torna cada vez mais incômodo à medida que o filme vai centralizando suas questões na resolução desses conflitos, e menos no registro do território habitado. 

Há ainda algumas intervenções questionáveis, que pretendem imergir nesse ambiente de morte e surrealismo habitado pelas personagens, mas que operam mais como artifício para compensar a frieza e despertar reações do público. A principal delas é o sacrifício de uma cabra, filmado em plano-sequência com abertura de zoom, partindo de um enquadramento frontal do animal nas mãos do homem que o sufoca e ampliando o quadro progressivamente até enquadrar os membros da família, que observam a morte com total indiferença. Um plano que parece importado de algum exercício de crueldade do Michael Haneke, típico gatilho pra gerar burburinho em hall de festivais. As cabras aparecem novamente em outro plano de surrealismo à Luis Buñuel, desaparecendo e sendo encontradas sobre os galhos de uma árvore, em outra cena que ocupa essa mesma função excêntrica. Momentos que acabam se sobrepondo à frigidez dramática e dão forma a uma estreia irregular. 

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