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Críticas

Cineplayers

Rota de colisão.

9,0

Paul Thomas Anderson filma uma América sempre no limite, à margem, à beira. Seus personagens são indivíduos obstinados, limítrofes, desajustados e selvagens. Suas temáticas e ambiências, perigosas, pouco tradicionais, investigações que ninguém quer cogitar. Vemos isso em Boogie Nights – Prazer sem Limites (Boggie Nights, 1997) e suas inspirações scorseseanas ao adentrar a ascensão e queda do cinema pornográfico em um ritmo intenso, violento e degradante – assim como nos grandiloquentes ares à la Kubrick de Sangue Negro (There Will Be Blood, 2007), a câmera entrando sem volta em uma mente gananciosa nas raízes da América, que mais cedo ou mais tarde eram poços de riqueza capazes de explodir no rosto dos próprios gananciosos.

O Mestre, em outra mão, falava sobre um desejo de liberdade e uma ânsia por falta de amarras tão grande que seu protagonista era condenado a jamais ter uma casa, jamais ser domado, jamais ser educado. Tanto em Jogada de Risco e seus marginais obstinados, o desespero apaixonado e furioso de Embrigado de Amor, que quer libertar-se de controle e viver dos desejos, e o coral à la Altman em Magnólia sobre frustrações e tragédias que o caos insiste em jogar sobre pessoas que se julgavam tão potentes. Eles sempre querem muitos, e sempre podem botar tudo a perder em sua instabilidade. Analisando por esse retrospecto, o filme novo de Anderson parece quase uma síntese de seus protagonistas e por conseguinte, da forma que vê o seu país e a sociedade onde vive.

Falamos de Vício Inerente, adaptação do romance homônimo publicado por Thomas Pynchon em 2009. O termo que batiza ambas as obras vem de uma referência a uma propriedade de um objeto físico que faz com que o mesmo se deteriore devido a uma instabilidade fundamental de seus componentes. E é justamente o que testemunha o detetive particular e hippie doidão Doc Sportello, perdido entre encontrar o amante de sua ex-namorada e experimentar todos os psicotrópicos e alucinógenos que aparecem em sua frente.

O encontro entre contracultura e literatura hard-boiled não é exatamente  novidade – vide o festival descarrilhado de violência repentina, diálogos nonsense e viagens cômicas promovidos pelos irmãos Coen em O Grande Lebowski (The Big Lebowski, 1998), verdadeiro ícone da geração slacker. Mas ao contrário da narrativa sóbria e fidedigna ao cinema de crime e investigação dos Coen, para Pynchon e PTA o policial está mais para um mar desgovernado de possibilidades.

Compartilha-se o humor absurdo, com o protagonista indo cada vez mais fundo em seu embate contra uma América na mesma medida reacionária e pervertida, com seus jovens indivíduos sofrendo em suas mãos – a Era de Aquário era passado, ser hippie nos anos setenta era quase um crime, a guerra de “Nós contra Eles” estava declarada. Doc sofre nas mãos de antagonistas dos dois lados da lei – o paradoxal Delegado Bigfoot, contrastando ódio reacionário e atormentados desejos de libertação de um lado e traficantes e nazistas de outro. Pontuais figuras – empresários, médicos, viciados e outras - aparecem como clowns, cômicos em sua caricatura e tristes em seu arquétipo, reforçando acima de tudo a condição de Doc como um “outsider” da América. Tão diversa, tão estranha, tão em  rota de colisão consigo mesma, assim como o filme e sua viagem intertextual derretida em ácido lisérgico.

É famosa uma história de Howard Hawks que, quando filmava À Beira do Abismo (The Big Sleep, 1946), o cineasta foi perguntado pelo elenco sobre o complicado enredo da trama; quem seria o assassino, se o inocente era inocente mesmo, por aí vai. Hawks disse que também não entendia nada, mas adorava o clima ambíguo da história, seus detetives violentos e indiferentes, seus interesses afetivos misteriosos e ambíguos, as mil e uma reviravoltas, as sombras sempre dominando o ambiente. Mais tarde, essas dúvidas seriam enviadas ao autor do romance original, Raymond Chandler, e o mesmo teria comentado a um amigo que ele também não sabia.

Coisa parecida acontece em Vício Inerente, trocando o durão pelo doidão, a femme fatale pela adepta do amor livre, a fotografia em chiaroscuro pelas luzes psicodélicas opacas e a cenografia berrante, os narradores culpados e fantasmas que repartem a narrativa entre passado e presente pela narração extraída literalmente do livro ipsis literis, evidenciando construção a partir de algo e quebrando o tempo do filme em episódios, suas reviravoltas em set pieces de longos diálogos de câmera estática onde basicamente todo e qualquer assunto é posto em cheque. O fio narrativo é bifurcado, entrelaçado, incompreensível.

PTA compreendeu o caráter menos de fabulação, mais de tese, procurando nos primórdios de suas carreiras em videoclipes transformando esses momentos de voiceover em uma rachadura perdida como os anos setenta, oitenta e noventa – cinemas em busca de identidade, que firmam pé  na incerteza, na mudança constante de rumo, sem jamais firmar o compromisso com alguma ideia.  Os anos 2000 recordam os anos setenta, recordam do Eastmancolor, dos filmes quebrados nos episódios progressivamente violentos e absurdos, os protagonistas que não seguiam nenhuma moral absoluta, a estilização desprezando o naturalismo em favor do simbolismo.

Vício Inerente é o fruto de um projeto pessoal constantemente mutante, que tem medo de, caso perca sua instabilidade, perca sua razão de existir – seja ela qual for. A América de seus ouros filmes, que já foi urbana, espiritual, raivosa e perdida, agora paga seus pecados em um filme-caldeirão de influências, que cozinha em fogo alto cada tentativa desesperada de se livrar de amarras; cada ameaça às liberdades individuais; a inevitável responsabilidade que todo homem livre já nasce condenado; a falta de sentido e a certa dramaturgia do absurdo, repetindo leit-motivs cômicos e dramáticos a todo tempo, com Doc protagonizando muitas histórias em uma só, salvando alguns e condenando outros, tendo diálogos extensos com  quase todos que encontra, compartilhando de silêncios constrangedores com o espectador frente ao esvaziamento narrativo obtido da sobrecarga narrativa.  Os planos estáticos compartilham espaço com travellings, com closes incômodos e composições de quadro pouco usuais, acelerando e desacelerando, narrando e desmentindo a própria fabulação – a atmosfera induzida pelo uso de narcóticos, incapaz de distinguir normalidade e aberração, mas ciente da ameaça da sobriedade.

Falar dos filmes de Anderson é falar de um cinema em cacos, onde todos parecem protagonizar a mesma história indefinidamente, sujeitos ao “vício inerente” de sua condição humana, inferno e purgatório daqueles que, frente ao paraíso do conformismo, sofrem do desajuste por causa de suas naturezas solitárias, desviantes; há os que corrompem-se para ascender, os que abandonam tudo para não pertencer e os que como Doc Sportello observam impotentes a entropia à sua volta. Todos párias equilibrando-se entre liberdade e opressão, protagonistas de filmes mutantes e conflitantes em sua estilização e dramaturgia, necessárias afrontas contra a normatividade, em rota de colisão constante contra todo e qualquer regime estético totalizante e gravado em pedra. As ideologias estão se desfazendo, as ideias se confundindo, o sentindo está se esvaindo, o circo normativo é denunciado de maneira incansável; além de observação, além de tese, Vício Inerente é o uivo bicho grilo contra o mundo.

Comentários (11)

Diego Henrique Rezende | sábado, 28 de Março de 2015 - 19:46

Porra! Que crítica fodástica! Eu estava ansioso pela película, agora, então...😁

ana paula mello | domingo, 12 de Abril de 2015 - 19:58

O único personagem de verdade do filme é o detetive Doc Sportello, os outros são, como se disse, apenas arquétipos, que desfilam sem parar, diante dos olhos, ora incrédulos, ora resignados, ora entorpecidos do detetive. O clima é, propositalmente, de bizarrice e non-sense. A história em si é o que menos importa. Mas há uma cena, muito breve, em que o tipo feito pelo Owen Wilson é devolvido para sua esposa e filha, depois de muita confusão quanto ao seu paradeiro e real identidade, em que é possível, para quem conhece o cinema de PTA, identificar um paralelo com seus filmes anteriores. É interessante verificar que, apesar ou justamente por causa dele, o caos, há sempre alguém voltando para casa ou se reconciliando no fim dos filmes do PTA.

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