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Críticas

Cineplayers

Herzog e a ironia da maldade.

7,5

Se o cinema de Herzog pudesse ser sintetizado por uma temática específica, ela certamente estaria conectada com a relação entre o homem e a natureza, e a forma com a qual ele lida ou tenta lidar com as conseqüências deste convívio por vezes nada harmônico. Em filmes como Fitzcarraldo e Aguirre - A Cólera dos Deuses, ambos passados em meio às belas, úmidas e desoladoras paisagens do interior da floresta Amazônica, os principais conflitos que se estabelecem estão todos circundados pelo pensar e agir humano e pela ação, direta ou indireta - que pode surgir da mera existência de uma montanha até de catástrofes eventuais -, do ambiente  no qual estão instalados.

É a ação da natureza sobre o homem a responsável também pelo princípio trágico deste Vício Frenético. Durante a tempestade tropical provocada pelo furacão Katrina nos Estados Unidos, que deixou a cidade de New Orleans debaixo d'água, o detetive McDonagh (Nicolas Cage) arriscou a vida para salvar um prisioneiro em uma cela prestes a inundar. O heróico ato de resgatar um delinqüente acabou proporcionando ao oficial problemas na coluna, uma perna manca e de quebra o vício em cocaína, que em um primeiro momento era utilizada para disfarçar a dor mas que se tornou, com o tempo, em uma dependência de prazer tão intensa a ponto de estar junto dele durante toda a investigação que conduz o filme.

O ponto de partida (retrato de um policial viciado) é idêntico ao Vício Frenético de Abel Ferrara, do qual comentava-se ser uma refilmagem, mas não é preciso muito tempo para notar que tanto o projeto estético e narrativo do alemão quanto sua abordagem da temática são determinantemente diferentes do filme do ítalo-americano - apesar de obterem um resultado semelhante nas reflexões que impõem por estas vias tão distintas. Em primeiro lugar por se tratar de um filme sobre o espetáculo do mal, assunto que não pertence ao cinema de Ferrara. O personagem de Harvey Keitel no filme de 1992, asfixiado pela dor que palpita da sujeira sobre a qual sobrevive, busca a redenção após enfrentar e por muitas vezes condescender com o mal, enquanto Cage e Herzog exploram indeliberadamente as possibilidades que este mal apresenta para ironizar a degradante e constrangedora realidade de seu personagem e do meio em que vive – novamente a natureza, desta feita construída pelo próprio homem e marcada pelo cinza apático das construções de concreto.

Portanto é natural que enquanto Keitel desaba aos pés de um cristo imaginário implorando pela desejada redenção e se emociona ao ver uma freira se culpar por ter sido estuprada, Cage tenha visões alucinógenas com iguanas, negocie com traficantes, ameace velhinhas com armas de fogo e chantagie jogadores para conseguir vencer suas apostas e garantir o dinheiro para acertar contas com bandidos que ameaçam sua namorada – que, por nada, é prostituta. Tudo neste filme de Herzog, aliás, se expande proporcionalmente até chegar ao extravaso, ao cinema puramente do artifício - ao contrário de Ferrara, onde o choque das imagens vai aos poucos sendo contaminado pelo humano até o filme se tornar praticamente minimalista. O vício de Cage, sua perda de limites, a perturbação e alucinações com as drogas, os métodos de investigação, enfim, seu personagem e ações são levados às  últimas conseqüências através de um radicalismo cínico e grotesco, mas fascinante justamente por atingir através de toda esta bizarrice um contexto tão real quanto o de qualquer filme pretensamente sério sobre o assunto.

A ousadia e habilidade de subversão são tamanhas que seu filme acaba negando boa parte do que o gênero policial construiu nestas últimas três décadas. Se desde os anos 70 se convencionou em trazer para o cinema a realidade das ruas de forma crua e visceral, é a surrealidade e o artifício quem atraem o alemão e se transformam em vertente para uma ácida reflexão acerca dos rumos que o homem e seu meio, a sociedade, têm tomado neste mundo cada vez mais caótico e agressivo. A imagem, com todo seu exagero e ironia e eventual oniricidade, se transforma em veículo abstrato para esta nossa realidade. A New Orleans de Herzog é o inferno em cinza, e aqui extorquir, traficar, roubar, ameaçar e eventualmente acender um cachimbo com pedra durante uma abordagem são ações que constituem um espiral degradante, mas que conduz o agente rumo ao sucesso. Sendo que qualquer semelhança com nossos noticiários não é mera coincidência, resta somente abraçar ao filme e rir disso tudo junto de Herzog.

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