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Críticas

Cineplayers

O rosto esgotado da “novíssima comédia americana”.

1,0
Não são necessários mais que 10 minutos para se aperceber do fiasco homérico, de fato uma descida aos círculos mais tediosos, estéreis e insossos da comédia, que é Snatched (idem, 2017). Duas cenas e o letreiro inicial já lhe são suficientes: a abertura, que anuncia o desaparecimento de duas turistas pelas florestas equatoriais, é seguida por uma espécie de trompe-l’oeil que disfarça um imponente avião cruzando o céu azulado de algum mar caribenho, só para que a câmera se afaste e revele não só a estrutura de papel, como uma Amy Schumer no falatório inquebrantável e típico das suas apresentações em stand-up, para na cena seguinte, mantendo o mesmo tom, encarar um término de relacionamento que, se mantém algum nível de interesse dramático, é somente através dos figurantes contratados para adornar o café em que a cena acontece – nem a aparente piedade distanciada do casal que sentava ao lado dos protagonistas (e já lhes forço bastante o sentimento) é crível o suficiente, e chego ao ponto de assumir que, se estavam se apiedando de alguma coisa, essa “coisa” podia muito bem ser a própria estrutura fílmica que, mal sabiam, ou bem sabiam (este é o argumento), ia derrocar na catástrofe seguinte. Catástrofe, esta, que não consegue ser jocosa nem para si mesma: mesclada ao amargor quase incontornável de não saber para onde mais vasculhar em busca de um riso genuíno, a sensação é da mais pura perda de tempo.

Diante de todo desastre, é sintomático que não se saiba sequer por onde começar. E não pela cegueira diante do que realmente pode ser salvo do filme, mas pela incredulidade posta à prova por um realizador cujo mau gosto faz necessário que se pergunte: o que possivelmente poderia ter sido considerado, de antemão, como trunfo certeiro de seu sucesso? A “genialidade” cômica de Schumer, sua colocação ao lado de uma “lenda” (apagada) do Cinema, as belíssimas locações tropicais? Principio pela ordem então posta: de onde se articulou que um humor típico do stand-up comedy poderia ser transposto ao cinema de qualquer maneira, não sei, mas certamente o sentimento do logro foi injetado com as mesmas pressas cegas de quem repentinamente precisa promover uma substituição no show business e pensa que arrancar qualquer membro bem vestido da platéia lhe renderá um bom serviço. Não há funcionamento orgânico em nível algum, e precisamente porque qualquer brecha de naturalidade é logo sufocada por uma gramática exausta, já natimorta há tempos, em que o novo código de comédia é antes o vexame que a mise-en-scène. 

Schumer se resume a trejeitos insuportáveis e grotescamente característicos de uma geração acostumada a uma comicidade embalada, rápida, “memética”, que tem seu valor exatamente na velocidade de passagem/entendimento, na significação única e caricata, inteligente e criativa para o curto espaço de tempo em que sobrevive, e que o cinema ainda não soube adaptar. Uma voz miada e engolida pelo embaraço constante que demarca as situações e qualquer sinal expressivo de histeria (olhos esbugalhados, cenho franzido, recuo da cabeça, mãos desajeitadas, urros desmedidos), ambos aliados a esta que pode muito bem ser a maior marca de cansaço da novíssima comédia hollywoodiana: se seu tom pudesse ser transformado num rosto, este estaria preenchido de sulcos e rugas, que nada mais seriam que as tentativas incessantes de tornar o embaraço, a vergonha e a humilhação (geralmente autoimposta, como é o caso enjoativo da protagonista) os grandes trunfos de uma sensibilidade cômica que nunca chegou a decolar. Há um desespero tão grande em criar uma sequencialidade quase irrespirável de situações vergonhosas, que, sabe-se lá como, de alguma maneira o filme sofre de uma equação inversamente proporcional: quanto menos parece afeito ao ilusionismo enraizador da ficção, quando menos, na verdade, esse ilusionismo é substituído pela força do aparente ritmo cômico (que nada mais é que a sucessão de trocadilhos e piadinhas rápidas e forçadas), mais crescem as sensações de repetição, de que a cena seguinte é a mesma que a anterior, só alteradas as circunstâncias e piadas; mais se avantajam as necessidades de criar efeitos.

Efeitos de quê? Ora, o dorso já excessivamente curvado e os olhos inquietos são reflexos exemplares do marasmo que é seu protocolo: há um plano claro de falso empoderamento (aquele clássico em que três ou mais personagens caminham em câmera lenta, em direção à câmera, com qualquer música pop ou rap embalando seu porvir de superação dramática), um outro plano propagandístico e típico dos canais de turismo (Schumer na garupa de uma motocicleta, alternância entre planos médio e aberto para visualização da exuberância natural, também embalado com qualquer música grudenta; seus cabelos não mais ao vento, mas embaçando o próprio rosto, como garantia também natimorta de comicidade); e até mesmo um plano óbvio – é preciso não se acostumar a ele – em que a logomarca do hotel será mais proeminente que qualquer personagem. É necessário dizer mais algo? É necessário apontar o já escancarado (dês)tratamento? De espectadores para potenciais consumidores; de espectadores para platéia vulgarizada cujo direcionamento à tela é baseado na compreensão empacotada de um sem-número de trocadilhos. O valor destes, claro, é o da superação à piadinha anterior (e ao filme anterior/posterior de mesma espécie, também), todos fundados sob uma distância: a que nível de humilhação se pode chegar. Aqui, foi necessário à comediante mostrar os próprios seios – só pelo gesto de mostrá-los, nada mais. 

Nem mesmo a relação da filha com a mãe é crível, tamanha sua necessidade de vendagem. Pois se, antes, o espaço reservado à ressurreição das relações era obviamente colocado ao término, é tudo tão tristemente irreal, que o ato final e simbólico de restauração afetiva não só figura como mais um em meio às tentativas de impor alguma química (é dela que sobrevive a comédia!) entre Hawn e Schumer, cujo único ponto de encontro é possivelmente o cabelo louro, como dá um tiro no próprio pé e absorve o tom vergonhoso que havia colorido artificialmente todas as sequências prévias. A variação narrativa para o filme de sequestro, todos os assassinatos, as fugas e auxílios, a presença do irmão que se inicia inútil (e termina, obviamente, embaraçosa), o plot twist previsível e baseado no desespero feminino – é tudo tão apelativo a uma sensibilidade de máscaras prontas, de peões que só giram em torno do próprio eixo, que não se pode levar na brincadeira nem mesmo a tentativa do diretor ou da roteirista de não se levarem a sério. Tão descartável quanto a embalagem na qual é vendido, não se pode nem dizer que sua presença será rapidamente embalada no sono pesado do esquecimento: não possui sequer a valoração necessária para ser considerado memorável ou esquecível. Seu peso é nulo. 

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