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Vestida para Matar

(Dressed to Kill, 1980)
8,1
Média
344 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

“Don't make me be a bad girl again!”

9,0

Durante toda a projeção de Vestida para Matar (Dressed to Kill, 1980), ressoam no ar ecos de Psicose (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock. Inclusive, à época de seu lançamento, muitos o classificaram como “um Psicose sem grife” e outras minimizações tolas que nem de longe conseguem  entender e, mais importante, explorar o filme de Brian De Palma. É verdade que o cineasta sempre foi um fã incurável das obras do mestre do suspense, em especial nas suas primeiras décadas de carreira, em que rodou trabalhos que escancaradamente podem ser vistos como releituras de clássicos de Hitchcock, como por exemplo, Dublê de Corpo (Body Double, 1984), a versão mais apimentada de Janela Indiscreta (Rear Window, 1954). Mas o interessante nessas “versões” é que a influência de um cineasta tão renomado como Hitchcock não condena a obra a uma mera homenagem cinéfila incapaz de alcançar a magnitude de sua referência, mas sim servem de ponto inicial para que De Palma desenvolva seu próprio estilo, pegue apenas algumas bases e ideias-chave e com isso consiga se descolar por completo com um trabalho puramente autoral.

No caso de Psicose, De Palma se utiliza basicamente da estrutura narrativa e da reviravolta arriscada de ousar matar sua protagonista logo na meia hora inicial, substituindo-a por outra até então periférica na história – além, claro, do teor sexual que fez do filme de Hitchcock um escândalo em sua época. A grande sacada de Psicose, que talvez nem tenha ficado tão evidente, era não apenas o uso do famoso McGuffin hitchcockiano (o dinheiro roubado por Marion Crane), mas a exploração desse recurso a um nível exponencial, quando nos damos conta de que a história em si é o grande McGuffin, e que o vale são os signos, os jogos de luzes, o surto sanguinário da cena do chuveiro, o vilão emblemático, etc. Nada mais apropriado para um cara como De Palma, que durante toda sua filmografia quase nunca se preocupou com roteiros e histórias a ponto de se tornar refém destes. Pelo contrário, seus filmes são todos imagem, luz, som, e se sustentam essencialmente nisso, por mais que a trama possa vir a ter o seu interesse. A partir do momento em que notamos que o que Psicose mais exala é o sexo, delineado pela técnica afiada de Hitchcock, podemos entender o que De Palma quis fazer em Vestida para Matar, que veio vinte anos depois, livre de qualquer censura.

Vestida para Matar tem como fio condutor a história do psicólogo Robert Elliott (Michael Cane), que se encontra numa difícil situação quando um de seus pacientes lhe rouba uma navalha e começa a perseguir os outros pacientes. Quem está na mira é Kate Miller (Angie Dickinson), uma dona de casa que leva uma vida sexual frustrante, mas que por dentro está explodindo de tesão, e encontra a chance de se saciar ao conhecer um cara misterioso em um museu. Liz Blake (Nancy Allen), por sua vez, é uma prostituta que presencia um dos crimes do paciente de Elliott e agora entra na lista de próximas vítimas do maníaco.

Qualquer estudo de personagem que possa estar sugerido na trama não passa de distração, quando o que realmente explode na tela é a tensão sexual latente entre eles, independente de sua psiquê. E para tratar de sexo com eficiência, o jeito não é apostar em um roteiro elaborado ou uma trama intrincada, e sim apelar para os sentidos mais naturais: a visão e a audição, o voyeurismo. Resumindo: imagem e som. Vestida para Matar se sustenta apenas em suas imagens compostas ao rigor estético inebriante de De Palma, e a maior prova disso está na longa sequência apoteótica do museu (mais uma referência a Hitchcock, desta vez focada em Um Corpo que Cai [Vertigo, 1958]), no jogo de gato e rato entre Kate e o misterioso amante, em que a música de fundo se encarrega de pontuar as emoções dos personagens enquanto a câmera os acompanha em um labirinto enlouquecedor de corredores, quadros, saletas, cores e luzes (me arrisco a dizer que está nessa cena o ápice da carreira de De Palma).

Claro que isso não desqualifica a intriga presente na composição dos personagens, em especial na relação de desejo entre a câmera e as personagens femininas. Kate por ser um vulcão em erupção, louca de desejo, mas insatisfeita, mantendo sempre uma tensão sexual no ar durante sua participação. Liz, que só pelo fato de ser uma prostituta, já carrega consigo toda uma óbvia carga erótica. Há também a construção puramente cinematográfica de uma atmosfera de sonhos envolvendo essas personagens, como uma névoa que oculta suas identidades , inclusive na do assassino, na questão da mudança de sexo, na descoberta aterrorizante e ao mesmo tempo atraente de um lado feminino, nos dilemas internos de cada um, e no fascínio que tudo isso causa em volta da figura da mulher.

Com Vestida para Matar, De Palma salienta o que talvez tivesse sido a principal intenção de Hitchcock ao filmar Psicose: se desapegar de qualquer recurso textual, mesmo os personagens (matar sua protagonista na primeira metade sem nenhum remorso e tocar com a história usando uma estepe qualquer) e se focar apenas no objetivo de provocar reações diversas apenas com o visual, em uma narrativa elegante, mas ao mesmo tempo desimportante, criar um clímax sanguinário ainda no começo (a cena da morte no elevador nada mais é que uma refilmagem da famosíssima cena do chuveiro), e construir em suas imagens o que há de mais elementar e físico – tanto que o que muitos criticam como sendo uma atmosfera um tanto “fake” e artificial, nada mais é do que o seu principal trunfo e garantia de excelência. Em poucas palavras, conseguir associar o conteúdo central da obra não ao que está sendo dito em palavras, mas sim nas ações. Enaltecer o cinema pelo que ele é por natureza: luzes, câmera, ação.

Comentários (12)

Luiz F. Vila Nova | segunda-feira, 16 de Setembro de 2013 - 08:30

Um dos melhores do De Palma, sem dúvidas.

Marcelo Leme | terça-feira, 17 de Setembro de 2013 - 14:34

Brilhante texto para um grande filme! Gostei de como apontou Hitchcock como referência.

Heitor Romero | terça-feira, 17 de Setembro de 2013 - 21:36

obrigado, Marcelo :)

Patrick Corrêa | sábado, 18 de Outubro de 2014 - 00:09

Excelente crítica! Só pra varia um pouco, né, Heitor? 🙂
Quanto ao filme, é um dos exemplos do quanto De Palma foi rei na década de 80, filmando suspenses como ninguém.

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