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Críticas

Cineplayers

Sangue nas mãos de todos.

9,5
Uma das chaves pra compreender o filme novo de Benjamin Naishtat é conhecer seu filme anterior, História do Medo. Outra chave possível para entrar no universo imagético proposto pelo diretor é saber antecipadamente que seu diretor de fotografia é o nosso Pedro Sotero. Tendo essas informações à mão, uma porta pode se abrir e o longa descer pelos canos certos. Ainda tem a possibilidade mais acertada que é não ler esse texto e aproveitar o longa sem maiores spoilers (ainda que técnicos), aproveitando cada boa descoberta, uma das surpresas mais felizes da Mostra SP desse ano. Recém chegado de San Sebastian, onde fez a festa (prêmios de direção, ator e justamente fotografia), não dá pra negar o merecimento das láureas mesmo sem ver os concorrentes, simplesmente porque o filme é um grande acerto.

O cenário é o da Argentina nos anos 70. Na primeira cena, um homem sai de uma casa com um objeto, para a partir daí, dessa mesma casa, diversas outras pessoas saírem com as mãos cheias; se trata de um saque. Atenção na cena. Na seguinte, dois homens adultos discutem num restaurante cheio por causa de mesa para ocupar. A discussão ultrapassa todos os limites, ganha a rua e um deles se suicida na frente do outro. Ou ao menos tenta. Dois pontos de partida muito fortes e em 15 minutos o filme capturou o espectador. O caminho do roteiro, a partir daí, mostrará um advogado veterano prestes a entrar numa maracutaia, que será interrompida por uma investigação. Sobre um cidadão acima de qualquer suspeita? Quase. Não mais.

Naishtat tem algo em comum com Kleber Mendonça Filho que vai além do fotógrafo. Ele enxerga o surgimento da paranoia como parte integrante da vida em sociedade (de hoje?) e explora esse sentimento em material quase sempre ligado a uma aparente normalidade, que corrói essa mesma sociedade, criando uma doença impraticável de se livrar. Ambos também têm um olhar aguçado para a construção de gênero no cinema, com ao menos um pé no fantástico, e também ambos entendem o tempo em que vivem e fazem questão de dialogar com o mesmo. Naishtat sabe que, nos dois filmes abordados na análise, o semblante de seus tipos refletem questões prementes do hoje, e não se furta de expor uma ferida social do momento agora. Com uma ambígua 'sutileza explicitada', o diretor não mede esforços para contextualizar seu longa e provocar o espectador, seja em imagens ou em discurso.

O trabalho técnico do filme é absurdo, e não apenas de Sotero nas lentes, mas sobretudo dele. Se seu trabalho em O Som ao Redor e Aquarius tinha extrema significância para os desejos do autor, aqui ele consegue esse mesmo casamento perfeito e utiliza o zoom característico de Kleber para enfatizar o crescente de pânico que a narrativa empreende desde seu início; o trabalho de Pedro e Benjamin é muito potencializado, e não à toa ambos ganharam prêmio. Outro que caminha pela excelência é Vincent van Warmerdam, que já tinha cometido a fabulosa trilha de Borgman, e aqui repete o alto nível, nivelando o filme pro alto junto à montagem de Andres Quaranta, que já colabora regularmente com Benjamin e dita o ritmo de maneira exemplar. 

No elenco, os formidáveis Dario Grandinetti e Alfredo Castro duelam em silêncio, em cenas que são verdadeiras aulas. Mas igualmente o elenco está entregue ao que de melhor poderia oferecer ao projeto, transformando em co-produção Argentina, França e Brasil em um dos lançamentos mais interessantes do próximo ano. O filme que está na Mostra e também estará no Festival do Rio, pode ser visto no entanto ainda esse ano por essas duas plateias, que poderão ver a acomodação social diante do nascimento da banalização do mal defendida por Hannah Arendt. Diante do caos, da possibilidade do horror, da morte anunciada, a massa reage com apatia ou selvageria a favor. Sinal de que lá na Argentina, nada é muito diferente daqui. 

Filme visto na Mostra de Cinema de São Paulo

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