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Vermelha

(Vermelha, 2019)
7,9
Média
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Circo de transformações formais.

9,5

À primeira vista, não é positivo saber que Getúlio Ribeiro tem às suas mãos sua organização familiar para criar ficção. Estamos diante de pai, mãe, irmã, as relações de afeto e de sangue que se misturam e que criam uma nova textura na tela. No entanto, Getúlio abandona qualquer registro prévio conhecido e de uso habitual do hoje, para entregar o que seria a narrativa mais inusitada da Aurora desse ano. A partir desse próprio pressuposto orgânico local e afetivo, o diretor já subverte as expectativas do que se entenderia como uma ideia prévia de roteiro, tirando a segurança do espectador a todo momento.

Gaúcho e Beto consertam um telhado, Jonas os chama para cobrar uma dívida. Em paralelo a isso, dois homens viajam até o interior, em busca de um tronco que será retirado quase inteiro e levado até enfim essa mesma casa, no fim do dia. Assim nasce o longa, que parece preparar o terreno para uma estrutura narrativa ligada às relações familiares, mas não dura 20 minutos pra essa impressão dissipar. Ainda que Tiradentes apresente eventualmente filmes com estruturação menos radicais, o longa goiano não faz parte de uma proposta mais hermética de cinema, mas de um olhar desconstruído para as convenções cinematográficas, que abrem as possibilidades do projeto para um universo que a todo momento se esforça em tirar as certezas do espectador, tanto o mais convencional quanto o mais versado em um cinema menos amarrado. 

Getúlio é um jovem realizador fora do grande eixo que abre sua carreira com um projeto de cinema apostando na falta de segurança, tanto sua quanto da plateia. É um cinema obviamente de risco, mas que se escreve com uma tinta muito sofisticada de experimentação. Como se fora um livro de contos que acompanha uma saga dos mesmos personagens, o rapaz insere a própria família em constante tentativa de recriar suas funções domésticas e sociais, em registro que contempla muitas vezes o onírico, mas sem jamais perder o fio da ternura. Por ora seu pai provém, em outro momento uma pureza juvenil o acomete; sua mãe tem grandeza e altivez, ainda que sua cumplicidade com a filha remeta a uma relação entre irmãs. Amarra esse núcleo Beto, que cria com o pai Gaúcho uma dupla das mais simbióticas do cinema brasileiro recente. 

O afeto é a grande mola propulsora do filme, esticando seus braços pelo roteiro, mas o filme tem uma poética interiorana, logo seu olhar para o outro tem origem menos fluida e mais tradicional. Enquanto contorna a feminilidade e o espelhamento da relação entre mãe e filha, no masculino essa mesma fagulha precisa ser acessada de maneira menos óbvia. As mãos se tocam entre mulheres a tornar palpável os sentidos; entre homens, há o constante atrito com a qual se estabelece a masculinidade primal. E é dessas relações aparentemente cotidianas que o filme elabora sua força imagética, criando um terreno livre para uma base que varia entre a chanchada, o cinema de gênero e a liberdade de criação narrativa, com elementos que as identifica como tais e da qual também reinventa os mesmos à uma maneira quase quixotesca. 

Getúlio acaba por fim criando não apenas um conjunto de possibilidades inúmeras de reinvenção e subversão narrativa - e acaba por realizá-las, destroçando as certezas a cada nova passagem - mas também compondo planos dos mais inspirados para cenas que nascem inesquecíveis, como a leitura do sonho da mãe, a desavença entre Beto e Gaúcho, o diálogo com o além, e a irrepreensível sequência que começa em ameaça e descamba para uma briga na rua que junta no mesmo saco Sergio Leone e Looney Tunes. Unido ao fotógrafo Larry Machado, o jovem diretor cria imagens impossíveis de perder e relê as estruturas do cinema e de sua própria família, nunca abrindo mão de confrontar o formalismo e ousar com essa leitura carismática de uma trupe circense típica, que alia elementos do passado na arte para montar uma peça refrescante e vigorosa.

Filme visto na Mostra de Cinema de Tiradentes

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