Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Sinal de muitos tempos.

8,5
Os meninos da Alumbramento provavelmente não têm espaço no cenário cinematográfico que se avizinha hoje. Há mais de 10 anos atrás, os quatro amigos criaram o coletivo cearense e rasgaram a cena ao meio ao entregar uma bruxaria atrás da outra, alquimias anárquicas pra explodir na tela do cinema que eles mesmos ajudaram a formatar. Correu a boca pequena que eles faziam parte da 'geração Aurora', pra designar um grupo de cineastas nascidos e celebrados na competição principal da Mostra Tiradentes, das mais potentes e reflexivas do país. Estrada para Ythaca parecia panfleto avisando uma 'nueva onda' libertária e efervescente. Os irmãos Luiz e Ricardo Pretti, Pedro Diogenes e Guto Parente eram o que se devia ver na nossa cinematografia. Então, os meninos seguiram...

A Alumbramento definitivamente não acabou, mas hoje os longas que contém a participação deles vão além da ousadia formal e estética, apesar de ainda contarem com ela. Se é que houve um amadurecimento, o que mais fácil se observa é um aprofundamento na provocação sem torná-la gasta, a observação do estado das coisas em um caráter mais direto, ainda que a poesia das imagens permaneça intacta. Esse lançamento tardio de O Ultimo Trago (o longa competiu e ganhou 3 prêmios no Festival de Brasília 2016) se identifica como uma ponte entre extremos, já delicados em sua virulência, um elo perdido entre os jovens inquietos lá de trás e os homens de hoje, ainda inquietos.

Os irmãos Pretti e Diogenes são os capitães dessa nau que passeia pelo tempo através da intolerância. A partir do resgate de uma índia ferida na beira da estrada, o filme forma blocos de eventos com diferentes abordagens sobre a violência às minorias espalhadas em passagens nunca bem esclarecidas em calendário. Ainda por isso, talvez seja tão fácil enxergar conexões com o cenário social de 2019, que já encontrava fagulhas quando o trio concebeu e filmou sua epopeia. Como cada segmento se entrelaça com o posterior e cria ressignificância pro olhar geral, o trabalho de montagem de Clarissa Campolina é um dos principais trunfos para manter a pulsão de urgência do projeto, e canalizar a mesma de uma pra outra.

O extermínio indígena, o feminicídio institucionalizado, o racismo estrutural e as formações dos padrões e das bases que alicerçaram a sociedade infame que vivemos hoje são elaboradas sem panfletagem ou paternalismo. Em seu lugar, uma abordagem que transforma os sujeitos de tragédia e resistência dessas lutas em signos a serem trabalhados no registro de fábulas naturalistas, misturando a um só tempo o horror da realidade e a transformação dele em peças de um experimento típico da Alumbramento, significando os sinais em parábolas amplificadas por sons e cores, corpos e vozes. Da dança sinestésica inicial, indo até o cotidiano informal de um bar perdido no nada, e encontrando as 'mulheres do fim do mundo' como cantadas por Elza, O Ultimo Trago consegue uma tarefa nada simples de sintetizar a força da representação minoritária em levante com a relevância do tempo reconstruído em segmentos, sem neutralizar discursos ou incomodar não-afeitos ao mesmo.

Ao lado do trio de diretores que conhece suas próprias potencialidades e que mais uma vez investiga o conceito de luta política - aqui na poesia, embora urgente - como em Com os Punhos Cerrados, está um elenco de sonho, que incluem Samya de Lavor, Mariana Nunes, Rômulo Braga e Demick Lopes. A premiada luz do mestre Ivo Lopes Araújo é um capítulo a parte em um projeto que precisava arrebatar imageticamente para reverberar também as posições de seus espaços e sujeitos filmados, e talvez Ivo nunca tenha estado superior; como no "balé cantado" por Elisa Porto, ele passeia com sua lente por uma plateia de bêbados inebriados pela sereia moderna. Cenas como essa empreendem a força de um longa nem sempre claro, mas continuamente sedutor e impactante, um bicho vivo que bombeia indignação e atitude.

Comentários (0)

Faça login para comentar.