Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Notas sobre o endeusamento de diretores, o mal da expectativa e alguma palavra sobre o filme em questão.

5,0

Desde que assisti a O Último Mestre do Ar (The Last Airbender, 2010), numa sessão para a imprensa completamente vazia, fiquei buscando um objeto de reflexão para este texto, uma linha de pensamento que me fizesse traçar uma análise do novo filme de M. Night Shyamalan. A busca foi um pouco frustrada, pois não há muito que dizer sobre o filme como obra de cinema. Porém não foi um desperdício completo, pois existe sim algo sobre o quê refletir a partir do filme, do momento em que está sendo lançado e sobre a recepção que o projeto anda tendo, antes mesmo de ser visto pelo público. Como adaptação de um anime badalado (ou videogame, ou seja lá o que veio primeiro), O Último Mestre do Ar é mais um projeto de grande orçamento no meio do verão americano. Como filme de um cineasta amado/odiado, é um acontecimento. Bizarríssimo!

M. Night Shyamalan é um fenômeno. Quando O Sexto Sentido (The Sixty Sense, 1999) foi lançado, era possível ouvir em qualquer esquina, de qualquer cidade, em qualquer lugar do mundo, que ali nascia um gênio. Shyamalan foi comparado a Hitchcock e tal comparação parece ter causado um mal terrível, pois ele meio que acreditou, de certo modo. Corpo Fechado (Unbreakable, 2000), Sinais (Signs, 2002), A Vila (The Village, 2004), são filmes razoavelmente bem estruturados, mas dependentes quase que exclusivamente de uma revelação bombástica, ou de um momento de grande modificação que elevasse o suspense das platéias e a surpresa com os desfechos. Claro que não chega ao ponto de se retirar o mérito estético dos filmes, mas em conteúdo Shyamalan provava sua fraqueza. Tal fator culmina no péssimo A Dama na Água (Lady in the Water, 2006), onde a pretensão do cineasta atinge o ápice e sua qualidade como realizador atinge o fundo do poço. Porém, Shyamalan parece ter dado de ombros para a “regra” da revelação e fez um filme onde nada realmente tivesse que fazer sentido, que não fosse a construção pura e simples da mise en scène e que nela bastasse a força da narrativa. Daí nasceu o excelente Fim dos Tempos (The Happening, 2008) e junto dele o apedrejamento mundial ao diretor. Ninguém parece ter gostado de Fim dos Tempos, exceto uma parcela muito pequena de uma crítica tida como acadêmica. O diretor das massas passou a ser o diretor de duas dúzias de críticos, mas algo nunca mudou em todo o painel: Shyamalan sempre moveu a opinião pública de modo impressionante.

Até uns 5 anos atrás, era possível afirmar que nenhum outro cineasta no mundo causava tamanha comoção como M. Night Shyamalan, fosse pelo bem, fosse pelo mal. Falar sobre um filme do indiano é obrigação em 10 entre 10 fóruns de discussão na internet, seja em defesas quilométricas de teorias estapafúrdias ou muito bem fundamentadas a respeito das supostas intenções do diretor em suas construções sociológicas (neste caso, A Vila é insuperável no teor discussivo), seja em terríveis insultos, xingamentos e banalizações de suas capacidades como realizador. Em um lugar é possível ler que Shyamalan é Deus e no outro ele é o capeta encarnado. Uma pena é dizer que ele não é nem uma coisa, nem outra, já que tanto Deus quanto o Diabo, para quem crê neles, são seres únicos e Shyamalan conseguiu um concorrente à altura nos tópicos de discussões: Christopher Nolan. Mas o que afinal os dois têm de tão impressionante para causarem tanta euforia?

De certo modo, tanto Nolan quanto Shyamalan seguem fórmulas pré-definidas de trabalho, desde o início da carreira. Existem exceções, é claro, como é Insônia (Insomnia, 2002), no caso de Nolan, e Fim dos Tempos, no caso de Shyamalan (não obstante, ambos os filmes são dos melhores de cada um deles), mas no geral a cartilha de execução está lá, em todo trabalho. Shyamalan segue a idéia do esconde-esconde, criando ilusões e distrações para o público, para que no momento da revelação estejamos já estupefatos com o grande feito dele de ter nos mantido presos sem nunca notarmos, afinal, “que o cara estava mesmo morto o tempo todo” (oh!). Nolan curte uma surpresa também, mas curte a confusão mais que tudo e por tentar criar o caos e depois restaurar a lógica – no momento em que o filme se explica – ele ganha os louros de grande mestre em engendrar filmes apoteóticos e, pior de tudo, originais. Fórmulas são fáceis, assim como clichês, mas não devem ser condenadas simplesmente por serem o que são. O grande problema reside justamente em utilizar artifícios assim em função de algo mais complexo e tentar disfarçar seu uso como inovação narrativa. Se a execução de uma fórmula é capaz de atrair o olhar por ser mais reconfortante chegar a um denominador comum, não há problema em assumir sua qualidade de fórmula. Porém, como é simplório dizer que bastou seguir um caminho pré-determinado para se chegar a uma conclusão, ares filósoficos de complexidade são defendidos com unhas e dentes e a elevação da fórmula é postada, acima mesmo de sua real utilização.

Mas volto à afirmação de Shyamalan ser um fenômeno, tanto na internet, quanto no círculo crítico. Amar o diretor pode significar estar acima do senso comum, aceitá-lo como autor de cinema e ser refinado o suficiente para “entender” o que ele quer “dizer”. Odiá-lo pode significar ser mais ignorante ou mais esperto que o restante oposto, por não cair nas armadilhas das baboseiras profanadas, dos lixos que o diretor vem fazendo ao longo dos anos e do ego monstruoso que vem desenvolvendo. Claro que nos dois casos tudo depende da perspectiva, mas referindo esta basicamente a mim, afirmo que M. Night Shyamalan é simplesmente um realizador, como todos os outros no mundo. Parece mesmo que existe algum traço autoral em sua obra, uma preocupação recorrente com o inexplicável, com a aceitação social diante do absurdo, do conflito com a natureza. Parece também que ele é um cineasta instável, porém coerente com alguns traços, gostando ou não do filme que ele tenha feito. Mas acima de tudo, tenho pra mim que os filmes de M. Night Shyamalan sobreviveriam melhor sem “o nome acima do título”, pois é nele que naufragam todas as expectativas do público (e que, pelos números, parece também naufragar a carreira do cineasta).

Discutir Shyamalan deveria ser tão interessante e relevante quanto discutir qualquer outro diretor, porém a insana atenção que é dada a essas discussões e o exagero que pauta cada lado do que acaba se revelando uma batalha, comprometem a visão do que deveria ser a obra. Shyamalan se mantém à margem de tudo que o mundo pensa sobre ele, pois seu cinema está muito abaixo do mundo que o discute. Não por ser necessariamente ruim ou pelo mundo ser maior, mas por ser tratado como extraodinariamente relevante e fundamental, causando o horror de odiar o filme pomposamente (e de se encher a boca para falar isso), ou a maravilha de afirmar ser uma obra-prima (e de se encher a boca para falar isso). O mesmo acontece com Christopher Nolan; o nome ficou maior que a obra. E parece impossível se posicionar num lugar neutro, sem ter que comprar pra si uma armadura ou uma espada, para se defender dos ataques de quem discorda do seu posicionamento. Parece impossível nem amar, nem odiar tais cineastas, pois eles são absolutos, seja lá qual for sua qualidade – céu ou inferno.

Algumas dessas afirmações podem parecer fortes, com um tom de censura, como se discutir um diretor ou uma obra fosse algo ruim; não é, de jeito nenhum. Mas acho mesmo que se a discussão for baseada numa aura anterior de grandiosidade e que a partir dela se determine o gosto, sem ter na verdade a percepção do que a obra é na realidade, ela pode ser danosa e irrelevante. E fascinante ao mesmo tempo, pois possibilita a observação do indivíduo a partir de subtextos extremos de suas percepções. Christopher Nolan e M. Night Shyamalan são cineastas menores que as discussões que geram, mas criaram um fenômeno de proporções homéricas, que não se encontram fundamentadas em suas obras, mas sim em suas imagens projetadas, de revolucionários e gênios. Aí reside uma explicação particular para ter passado o texto todo falando somente deles, quando na verdade havia uma defesa de se discutir a obra em detrimento da imagem do cineasta. O filme não é somente o filme, nestes casos, pois eles são modificados por serem de quem são. Qualquer percepção de O Último Mestre do Ar, por exemplo, está subordinada ao nome de Shyamalan em primeira mão. É uma pena, mas é a verdade.

Porém, tal profusão de pensamentos meio sem conexão nasceu de um propósito único, que é tentar entender o que O Último Mestre do Ar tem de tão horrendo, para ter sido tão avacalhado, ou de tão magnífico, para ter sido tão louvado (antes de ser visto) por quem quer que o tenha feito. A resposta é que ele não tem nada demais, nem para um lado, nem para o outro. Não é um filme ruim, mas não é um filme bom; não inova em nada, mas também não disse que inovaria. Algumas características (se é que se pode dizer isso) de Shyamalan estão lá, mas poderia ser visto e atribuído a muitos outros diretores, operários braçais mesmo. Pode vir a ser um clássico da sessão da tarde, pode vir a ser cultuado, pode não ter suas continuações (o filme é uma primeira parte clara e evidente do que deveria ser uma trilogia, mas que talvez nunca veja a luz do dia, por conta do fracasso financeiro), mas dificilmente será esquecido, porque ainda haverá muitas discussões em fóruns de cinema, sobre como Shyamalan é genial ou como ele é um charlatão. Só que O Último Mestre do Ar mostra, muito bem, que o filme e seu diretor só são o que são e estão ali, no meio do caminho.

(Claro que todas as afirmações contidas aqui são subjetivas e qualquer um que ler este texto pode dizer que eu sou um idiota completo. Não negaria.)

Comentários (0)

Faça login para comentar.