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Críticas

Cineplayers

Documentário revê carreira da lenda do boxe, apresentando sua história narrada pelo próprio pugilista.

5,5

Se existe uma modalidade esportiva com vocação para o cinema, certamente é o boxe. Motivos podem ser os milhares. Talvez por sua capacidade de propiciar um grande espetáculo, pelo forte apelo das imagens viscerais de violência física, em seu palco em forma de arena. Pelo show de luzes, que fazem do ringue uma mise-en-scène iluminada tal como um set de filmagem, com sua fotografia naturalmente cinematográfica.  Pela sua intensidade, onde cada segundo e cada movimento pode, de um instante para o outro, oferecer uma nova guinada para os rumos da história: o que são as narrativas senão a expectativa acerca da resolução da tensão de um conflito? Mas sobretudo pelo caráter simbólico de um lutador de boxe: está ali o homem que deve lutar para permanecer em pé, ter capacidade de atacar ao passo que leva golpes, e saber administrar sensações tão dispares como agressividade e equilíbrio, técnica e eloquência, fúria e perseverança.

Uma vez que a condição de um pugilista em combate serve de metáfora para o homem diante da vida, o cinema se valeu de várias biografias de boxeadores (seja na forma de documentário, cinebiografia baseada em histórias reais ou personagens ficcionais) para trazer ao mundo filmes marcantes e muito premiados. Exemplos de grande sucesso existem aos montes, e títulos com este tema sempre estiveram presentes ao longo da história do cinema. Os mais lembrados são Touro Indomável (1980), de Martin Scorsese, biografia do meio-pesado Jake La Motta, que conferiu a Robert De Niro o Oscar de melhor ator; Rocky (1976), grande ganhador do Oscar de 1977 com roteiro de Sylvester Stallone, e que geriu toda a famosa série; Quando Éramos Reis (1996), Oscar de melhor documentário sobre luta de Muhammad Ali; e o dramático Hurricane - O Furacão (1999), sobre a história real de prisão e redenção de Rubin “Hurricane” Carter, filme que inclusive conta com a famosa canção homônima de Bob Dylan. Sem contar com clássicos das antigas como Punhos de Campeão (1946), ou títulos recentes como Menina de Ouro (2004), também ganhador de Oscar de melhor filme, Ali (2001), cinebiografia de Muhammad Ali, e A Luta pela Esperança (2005), sobre a verídica história do lutador Jim Braddock.

Porém, poucos pugilistas tiveram uma história tão dramática e fantástica quanto uma lenda chamada Mike Tyson. Forte candidato ao título de maior boxeador de todos os tempos, um gigante da modalidade, campeão desde os 14 anos, conseguia proezas como derrubar o oponente por knock-out em seis segundos já na adolescência. Aos 20 anos, já era o mais jovem campeão dos pesos pesados da história. Um fenômeno do boxe que ultrapassou os limites do esporte e tornou-se uma mega-estrela internacional, um ícone pop de apelo universal. Uma biografia marcada por altos e baixos, escândalos no casamento, prisão por estupro, conversão ao islamismo, mordidas em orelha. Do mais alto patamar de estrelado a mais absoluta decadência moral e psíquica. Uma história verídica de ascensão e queda, mas cinematográfica por natureza, hollywoodiana por excelência.

Tyson é o documentário que pretende revisitar a carreira e a biografia de Mike Tyson em tempos que sua popularidade anda em baixa, numa época onde o astro parece um tanto quanto esquecido: sem conquistas, sem escândalos.  Há uma grande vantagem aí, que é o distanciamento dos acontecimentos, o que permite uma abordagem mais sóbria e menos afetada. Outro fator que confere ao filme Tyson um crédito é o fato de ser um documentário inteiramente narrado pelo próprio: à rigor, é a sua autobiografia cinematográfica. A visão de Mike Tyson por ele mesmo, num estágio de sua vida de maior maturidade, onde reconhece erros e acertos, sem excessos de autocondescendência. Mike Tyson se desnuda por completo, exibe desde o seu lado canastrão, seu anseio e seus valores por querer ser o mais valentão e temido, o maior galanteador, que faz questão de estar rodeado de lindas mulheres, até o seu lado frágil, de criança debilitada e pessoa com sérios problemas psíquicos, sua depressão acentuada e sua falta de auto-estima crônica.

Mas o que pode ser a maior sacada do documentário Tyson é também a sua derrocada. Por centrar-se demais nos depoimentos de Mike Tyson, o documentário perde muito em dinâmica.  O lutador, com sua dicção errante e fala atrapalhada, pode levar o espectador a um knock-out de fadiga e tédio já nos primeiros minutos de exibição. O diretor parece estar ciente desse perigo, e para tanto procura variar os planos e enquadramentos ao longo dos depoimentos, e por vezes realiza um mosaico na tela, exibindo diversos takes simultaneamente, na tentativa de expor simbolicamente as várias facetas do mito. Chega inclusive a sobrepor algumas falas, realizando camadas de vozes, criando uma tessitura sonora não menos que perturbadora. Mas nada disso faz aliviar o peso para o espectador de ver um filme, ou seja, algo que se pressupõe uma linguagem audiovisual envolvente, da experiência de simplesmente ouvirmos um Mike Tyson sentado no sofá contando a sua história por quase 100 minutos.

No entanto, estão lá, como era de se esperar, registros de arquivos, com algumas sequencias de suas lutas determinantes em sua carreira e que fazem parte da história do boxe. Estas imagens apresentadas no filme estão sob renderização, com notável aplicação de um efeito visual que altera as tonalidades sensivelmente.  Tão interessantes quanto as cenas reais de luta de Mike ao longo dos anos 80 e 90 são as entrevistas de um ainda jovem Mike Tyson e promissor gênio do combate, ao lado de seu mentor Cus D’Amato, que exerceu um papel fundamental em sua vida. O treinador ainda o descobriu muito jovem, e viu nele um potencial extraordinário, e desempenhou em Mike Tyson um trabalho muito mais psíquico do que físico. Ao longo do filme, Tyson relembra emocionado que D’Amato ficava constantemente o incentivando, afirmando que seria simplesmente "o maior" do mundo, o lutador que iria devastar o planeta, isso enquanto ainda era um paupérrimo e problemático garoto do Bronx, da região do Brooklyn, em NY. Não por acaso, são nos momentos onde o lutador relembra D’Amato onde mais se sensibiliza, e inclusive chora ao longo dos atuais depoimentos.

Interessante notar como o documentário, lidando com uma história totalmente verídica, apesar de ser um filme pouco inventivo em sua linguagem e até certo ponto um tanto preguiçoso, propõe um recorte para a biografia de Mike Tyson típico de uma saga de herói bem delineada aos moldes clássicos: sua história é atemporal e universal. É possível estabelecer paralelos desde com parábolas bíblicas, com a literatura de Charles Dickens (em especial em Oliver Twist) até a série Star Wars. Temos aqui o garoto pobre e sem pai, cresce criado pela mãe solteira e que, munido de um dom especial, é encontrado por um velho e sábio mentor. Este, por sua vez, o incentiva a descobrir sua força interior, sua espiritualidade, onde reside a verdadeira energia. Em meio a sua ascensão, acaba sucumbindo a luxuria, cai em tentações, comete pecados e desvios de caráter, e sofre suas primeiras derrotas. Em baixa, busca redenção em Deus, opta pelo Islamismo, e tenta dar a volta por cima. Sua vida então torna-se um redemoinho, onde descobre que o seu maior oponente está em si mesmo.

Tyson, o documentário, é uma espécie de acerto de contas. Uma revisão de sua vida. Uma auto-reflexão, onde Mike Tyson e o espectador partem em busca da descoberta de quem é, afinal, esta pessoa que compõe o mito. Uma sessão de terapia que é levada ao público – por vezes muito enfadonha como cinema.  Torna-se mais do que evidente ao assisti-lo que falta um caldo, um arrojo cinematográfico, que não necessariamente deveria resultar em grandiosidade ou algo espalhafatoso, mas que conferisse um acabamento mais interessante ao filme – mesclar simples depoimentos do enunciador sentado, editando esse material com imagens de arquivo é um "feijão com arroz" que muitos documentaristas deveriam repensar. Entretanto, justiça seja feita: há sim uma ideia brilhante no filme, que é a de utilizar imagens de Mike Tyson refletindo de frente para o mar. Neste ponto do documentário, temos cinema. E a razão para qual a imagem é tão simbólica quanto necessária, é a mesma que a faz presente em filmes clássicos aparentemente tão distantes, como no final de Os Incompreendidos (1959), de O Selvagem da Motocicleta (1983) e até mesmo no autobiográfico Os Boas-Vidas (1953), de Fellini: a sensação de libertação e redenção que o infinito azul do horizonte oferece as almas perturbadas pelas dificuldades da vida.

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