Com um atraso fenomenal, Tudo Pode Dar Certo finalmente estréia nos cinemas brasileiros nesta sexta-feira, resumindo um pouco da carreira de Allen nesta uma hora e meia de comédia reciclada. A boa verdade é que, apesar da escama engraçada e divertida, o filme é super depressivo e demonstra um falso otimismo com o ser humano, com a existencialidade e sua crença na casualidade quase que como uma religião – também alvo de ácidas críticas.
Marcando o reencontro do diretor com a cidade de Nova York, palco de seus principais filmes, conhecemos a história de Boris (Larry David), um mal humorado e neurótico físico que, por se considerar superior em QI aos demais seres humanos, não consegue se relacionar bem com ninguém de fora de seu pequeno ciclo de amigos. Quando uma jovem sem-teto chamada Melody (Evan Rachel Wood) pede para que ele lhe dê algo para comer, uma improvável amizade entre os dois tem início e as discussões tradicionais em suas obras sobre vida, morte, casamento, sexo, neuroses e cotidianos encontram seu campo perfeito para desabrocharem na diferença entre as personalidades (e idade) dos dois.
Boris ganha vida com o ácido Larry David (um dos criadores de Seinfeld), em uma das escolhas corretas do diretor em não interpretar o idoso. Ele, que costumeiramente vive esse tipo de persona, dessa vez deixa a cargo do eficiente Larry o rancoroso e arrogante Boris, já que sua imagem construída ao longo do tempo remete a uma pessoa mais frágil do que o personagem realmente exige. E sua construção, neste sentido, é excepcional: como não estamos acostumados com o ator, ele acerta ao transformar as tradicionais neuroses, os tiques nervosos, os palavrões, o modo grosso de tratar todos, em carisma ao invés da ofensa natural que soariam as frases do tipo que o personagem a todo segundo profere.
Apesar do tom cômico em abordagem, Boris é, na verdade, um personagem trágico: sua impossibilidade em lidar com outras pessoas nada mais é do que uma proteção, uma casca criada ao longo do tempo, das decepções, dos bons relacionamentos que acabaram de forma ruim, inclusive em uma falha tentativa de suicídio, que originou no andar manco que carrega. Com isso, Allen nos lembra sempre que aquele personagem, grosseiro, amargurado e engraçado é, ao mesmo tempo, bastante triste por essência. Certo momento do filme, quando Melody o chama para conversar durante a caminhada para casa, Boris fica desesperado ao sair de sua rotina, pois aquilo poderia gerar uma situação que sairia de seu controle, de sua previsibilidade, revelando uma insegurança que seu modo de falar e pensar, que sua sugerida superioridade esconde, tornando-o imediatamente complexo.
Já Evan Rachel Wood, crescida desde sua participação em Aos Treze e Garotas Malvadas, cria uma Melody ingênua, caipira mesmo, que recebe os insultos de Boris como aprendizado, aceitando sua superioridade ao invés de ofender-se – algo que se mostra necessário para que os dois tenham um relacionamento tão bom, apesar da diferença de idade. Diferente de Manhattan, onde também é trabalhada a relação de um homem mais velho com uma jovem, em Tudo Pode Dar Certo as casualidades dão o tom: Melody só casa com Boris porque ela não tinha mais ninguém e, sentindo a necessidade de crescer, amadurecer fora de casa, vê nele o ideal para seguir em frente na vida (quase como os faroestes clássicos, onde as jovens procuram homens para casar não porque estão apaixonadas, mas porque a sociedade exige). E Allen critica isso, ao colocar um personagem jovem, sonhador e bonito no caminho de Melody, deixando-a confusa na racionalidade, mas sem negar o instinto do jovem, da paixão, do sexo.
Há ainda a presença dos pais da menina, que demonstram mais uma vez os pensamentos de Allen sobre casamentos, convivências e decisões, vistos anteriormente em filmes como Maridos e Esposas e Setembro. Religião e convencionalidades da sociedade são os alvos de textos que, mostrando a mudança e libertação dos ‘eu lírico’, tentam representar um otimismo que, como dito na introdução deste texto, acaba sendo falso pela natureza trágica de todos que se envolvem nos acontecimentos do filme. A mensagem é positiva e até estranha se pensarmos na depressão que geralmente há nos sub-textos de seus filmes, mas é impossível negar sua mão nesta obra.
Tudo pode dar certo de acordo com o pensamento do protagonista, mas ele não crê em Deus, em destino, em relacionamentos... Será que se deixarmos apenas a vida nos levar, ficar entregues às casualidades do dia-a-dia, não estaremos à mercê de nossa própria existência? Regado mais uma vez com maravilhosas canções (sempre um dos pontos altos de sua carreira), espere por um humor ácido, texto inteligente, por um protagonista que conversa com a platéia e é visto como louco por isso, por coincidências, enfim, um Allen completo, com todas suas características, mas nada inovador.
Gostei do velho rabugento e inteligente.