Amoralidade, fanfarrice e inconsequência como escapes do jovem proletariado compõem este marco do cinema genuinamente inglês.
“Whatever people say I am, that’s what I am not!”
[Qualquer coisa que a pessoas digam que eu sou, é o que eu não sou!]
Arthur Seaton, personagem de Albert Finney,
no filme Tudo Começou no Sábado
François Truffaut, grande homem do cinema francês e mundial, certa vez escreveu, ainda como crítico na publicação Cahiers du Cinéma, em 1957, a polêmica afirmação: “o cinema britânico é enfadonho e reflete um estilo de vida submisso, onde entusiasmo, fervor e ímpeto são logo cortados pela raiz. O filme já nasce perdedor só por ser inglês.” Truffaut poderia até contar com certa razão em sua prerrogativa, ainda que esta possa soar muito mais como uma provocação à lá francesa frente aos vizinhos rivais do que uma constatação séria. De fato, historicamente falando, no cenário do cinema europeu os filmes ingleses nunca exerceram um papel de relevância artística e influência assim como os franceses, italianos, alemães ou mesmo como dos países nórdicos. Logo, em um mundo do pós-guerra, pré-revoluções dos anos 60, em plena agitação cultural, naquele momento nos fins da década de 50 o cinema inglês precisava desesperadamente de uma renovação, de uma nova cara, sintonizado com o contexto mundial de transformações de valores sociais daquela época.
Foi então que, assim como fizeram os franceses com seu movimento cinematográfico intitulado Nouvelle Vague, os ingleses conceberam o que eles chamaram de British New Wave, ou simplesmente “nova onda”, numa tradução para o português da expressão. No caso britânico, os filmes tinham o alicerce na figura dos personagens que ficaram conhecidos pelo termo angry young men, ou jovens rebeldes, que eram de certa forma uma resposta ao cinema norte-americano que há pouco havia revelado ao mundo James Dean e Marlon Brando, que personificaram a idéia do desajustado inquieto no imaginário cinematográfico. Como afirmou certa vez em artigo intitulado “Juventude e Rebeldia” o estudioso brasileiro de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, o fato de a última grande guerra mundial ter sido, nas suas palavras, uma renovada “grande ilusão”, esta facilitou o desajustamento das sensibilidades mais vivas entre os jovens, e o cinema se valeu das inquietações dos jovens incertos, ambíguos, neuróticos, fornecendo a esse mundo os seus protótipos. Por sua vez, estes angry young men eram situados, seja no cinema ou no teatro, como jovens pertencentes à classe trabalhadora, absolutamente comuns em vidas ordinariamente triviais, mas com um muita energia, inquietude e raiva em ponto de eclosão diante da pasmaceira da vida cotidiana proletariada e sem perspectivas. Geralmente, no caso inglês, seu lugar de extravasar o espírito de rebelião era o pub, onde iam beber e aprontar, cenário ideal para aflorar a iconoclastia e a transgressão, para a discussão e a divagação acerca de diferenças sociais, divergências no modo de encarar a vida, cicatrizar problemas pessoais. Grosso modo, esta é a receita do chamado filme realista-social inglês, que também ficou conhecido sob a alcunha de kitchen sink drama, um termo também aplicado em diversas peças teatrais inglesas da época com mesma temática.
Tudo Começou no Sábado não somente é considerado o primeiro filme que reflete esse momento cultural inglês, mas é o grande estandarte, símbolo maior dessa grande fase que viveu o cinema britânico. Deste celeiro, foram revelados ao mundo autores como Tony Richardson, produtor e diretor que ganhou dois Oscars, de melhor filme e diretor, por As Aventuras de Tom Jones, o dramaturgo John Osborne, o diretor John Schlesinger, de Darling, a que Amou Demais e do vencedor do Oscar de melhor filme e diretor Perdidos na Noite, Richard Lester, cineasta e pianista de jazz que entre outras coisas dirigiu os filmes dos Beatles, o diretor Joseph Losey, que com o filme O Criado foi contextualizado na cena inglesa, e Ken Loach, na ativa até hoje com sua proposta ímpar de estética audiovisual. Assim como o próprio Karel Reisz, diretor que também ficou muito conhecido pela autoria do livro seminal sobre edição fílmica “A Técnica da Montagem Cinematográfica”, uma importante referência bibliográfica para estudantes de cinema.
Ambientado numa cinzenta cidade do interior da ilha britânica, provavelmente em uma das do norte industrial da Inglaterra, Albert Finney vive Arthur Seaton, personagem que revelou o grande ator no cinema, um jovem que passa os dias na exaustiva e maquínica labuta em uma ensurdecedora linha de produção de uma fábrica de autopeças. Aliás, a primeira imagem do filme é emblemática: plano-geral do interior da fábrica, grande profundidade de campo, toda a imensidão, opressão e homogeneidade do ambiente industrial, som insuportável das máquinas, a sujeira e a desesperança cada vez mais evidentes à medida que a câmera aproxima de Arthur, que faz sua conta em narração-off de peças produzidas no dia (nine hundred and fifty four, nine hundred and fifty “bloody” five,...), algo que lembra um bocado o início do filme brasileiro O Homem que Copiava em vários sentidos. A sequência transcorre ao passo que o personagem vai, por meio da digressão e da narração em off, divagando sobre sua existência, sobre o quão medíocre é a vida de um trabalhador da classe operária, e encerra com seu aforismo particular: “What I’m out for is a good time. All the rest is propaganda” {numa tradução livre: “O que me importa é curtir a vida, todo o resto é papo furado]. Belo trabalho de composição e apresentação de personagem.
A abertura do filme é outro espetáculo à parte, e seria um pecado não comentar a carga simbólica da sequência. O letreiro do título original do filme, que é Saturday Night and Sunday Morning, aparece sobre a imagem da saída dos trabalhadores da fábrica por uma rua estreita, numa multidão homogênea em que indivíduos não são reconhecidos, vê-se apenas uma massa. A força do plano está na sua capacidade de sinterização: está logo ali, na abertura do filme, num quadro só, a idéia da massificação, automatização, e principalmente descaracterização vivenciada pela classe operária inglesa na sociedade moderna – e não por acaso Arthur, que é o mais avesso ao trabalho, é insultado como Red (comunista) por seu chefe de departamento. Até o próprio nome do filme é também reflexo dessa idéia crítica à automatização. Quantas referências só aqui: desde a concepção do caráter simbólico do plano, francamente influenciado pela abertura de Tempos Modernos, clássico de Charles Chaplin, até o filme dos irmãos Auguste e Louis Luimère de 1985 chamado A Saída da Fábrica Lumière em Lyon, um dos primeiros de toda a história do cinema, presente inclusive na primeira exibição pública da então nova invenção.
Em casa, a situação de Arthur piora. Tenta, sem sucesso, manter algum tipo de diálogo com os pais, mas a ruptura não tem mais volta. Seu pai, que sequer o olha, permanece vidrado, paralisado diante do efeito hipnótico da nascente TV, que no filme exibe sempre programação absolutamente banal e irrelevante – mais uma crítica enfatizada pelo filme. Este é um ponto de consonância com o cinema americano da época. Jim Stark, personagem de James Dean em Juventude Transvidada, vive semelhante descompasso com os pais, por não adotá-los como referencial, de um “não querer ser” como eles. Como bem fala Arthur em outro trecho do filme: “There’s a lot more in life than mum and dad have got” [Há muito mais para desfrutar na vida do que meus pais tiveram]. A saída? Para Arthur, aparentemente, mulheres. Em meio ao caos das circunstâncias e a opressão da indústria e do trabalho, nada como se meter em confusões com mulheres, umas mais experientes e malandras, outras jovens, bonitas e recatadas. É muito difícil deixar de crer que Luis Sérgio Person não tenha recebido alguma influência ao elaborar o clássico nacional São Paulo S.A., seja pela temática, pelas situações e circunstâncias, e também pela composição dos personagens – o que de forma nenhuma seria algo negativo.
E é justamente em seu relacionamento conflituoso com as mulheres que reside o grande mote dramático desta história. Arthur leva uma agitada vida sexual com uma mulher casada e mãe de um filho, anos mais velha, com um agravante no mínimo preocupante: Brenda é esposa de seu melhor colega de trabalho, Jack. À medida que vai empurrando com a barriga esse relacionamento sem o menor pingo de culpa ou autorepreensão, ele se apaixona por uma jovem, bela e recatada chamada Doreen, a qual jamais aceitaria viver com um homem dotado de tanta audácia frente o status quo. Se Jean-Paul Belmondo fazia um personagem amoral e desprovido de ética em Acossado, aqui Albert Finney celebra o espírito jovial, festeiro e inconsequente em situações tão engraçadas como abrir um sorriso maroto na cama da amante ao fitar o retrato do marido traído, ou então ao assustar a colega de trabalho ao deixar um rato morto nas suas coisas, ou no cúmulo de se divertir acertando, com uma espingarda de pressão, tiros nas nádegas de sua vizinha obesa e encrenqueira. Um grande mérito da narrativa do filme é este: o personagem faz barbaridades, amoralidades, mas pelo tratamento intimista, pelas digressões do personagem nas suas conversas e reflexões pessoais, ações condenáveis soam legítimas. Que personagem de cinema iria propor, nos dias atuais, com a maior naturalidade e cara-de-pau deste mundo, sem dó nem culpa, que sua amante fizesse o aborto com sua tia para que sua situação não ficasse ruim? Como disse em certo momento a amante Brenda: “Você não sabe a diferença entre o certo errado”. Aqui temos também mais uma camada de significação para o título, uma vez que faz alegoria à ideia de consequência, de punição natural no curso da vida.
Sua consciência aparentemente só vem à tona nas belas tomadas que exibem Arthur, ao lado dos demais trabalhadores, vagando pelas ruas da cidade em cima de sua bicicleta, com feição introspectiva e trilha que enfatiza a sensação de desolamento. Estas cenas, não somente uma referência clara ao clássico italiano Ladrões de Bicicleta, foram revividas e citadas no videoclipe da música Stop Me if You Think You’ve Heard This One Before, da banda The Smiths, clipe este que no final homenageia o ator Albert Finney, a grande estrela do longa. No que se refere a parte estética do filme, além das já mencionadas tomadas da bicicleta, Tudo Começou no Sábado, que é essencialmente urbano, ou melhor, suburbano, se destaca pela forma bem eficiente como retrata este contexto de vila industrial. A fotografia, em belo preto e branco, ganha força nos inspirados planos das ruas, que exploram a geometria e as linhas dos prédios e das calçadas, compondo uma arquitetura de quadro que trabalha com a profundidade de campo, em planos bem notáveis.
É evidente a preocupação em se manter um certo clima de verdade, de proximidade com o espectador, em compor uma janela voyerista que disponibiliza o retrato de um jovem proletário metido em confusão prestes a ter um ataque de nervos, por meio do nascente realismo-social inglês. Talvez por isso o autor Christian Metz, no artigo “O Cinema Moderno e a Narração” presente no livro “A Significação no Cinema” (da coleção “debates”), aponte Tudo Começou no Sábado como um bom exemplo de cinema moderno: “Verdade de uma atitude, de uma inflexão de voz, de um gesto, naturalidade de um tom. Assim, por exemplo, a maravilhosa cena quase dançada de O Demônio das Onze Horas, na praia entre os pinheiros. [...] Momentos desta qualidade, encontraremos não só em todos os Godard, todos os Truffaut e em alguns Atonioni, mas também numa grande quantidade de filmes modernos, desde La Dame de Pique até Adieu Philippine, passando por ‘Tudo Começou no Sábado’ e vários Losey.”
O legado do filme é contraditório. Ainda que esporadicamente ganhe citações na literatura sobre cinema (como nas mencionadas) e esparsamente ainda esteja presente em algumas listas de filmes clássicos ou livros com filmes obrigatórios, nem este filme, tampouco a chamada new wave inglesa jamais desfrutaram da popularidade, da relevância e dos holofotes de seu equivalente francês, que era a Nouvelle Vague. Prova clara disso é que, até onde se sabe, o título ainda está inédito no Brasil em DVD, presente só via VHS e em downloads. No entanto, permanece como uma preciosidade cult na cultura pop, uma deliciosa mistura de drama com o fino humor inglês, o lado ogro do trabalhador braçal aliado ao típico hedonismo britânico. Exemplo de sua perenidade está no fato de ser citado como o filme favorito do cantor e apaixonado por cinema Morrissey, além de ter inspirado conceitualmente todo o disco de estreia da jovem banda inglesa Arctic Monkeys, no álbum Whatever people Say I Am, That’s What I Am Not, de 2006. E assim seu legado deve continuar, uma vez que seu tema é, assim como em A Primeira Noite de um Homem, não só de um filme que aborda o rito de passagem da juventude para a maior idade, mas que, por meio do mergulho nas incertezas do protagonista, faz um retrato social atemporal.
Filme mais que absoluto da BNW, critica belíssima e muito merecida, Mion!