10,0
Blaxploitation: ao mesmo tempo em que a imagem associada a esse nome possui lugar cativo em uma representação popularesca da década de 70 em torno da cultura negra dos EUA, é inevitável perceber a inventividade do movimento cinematográfico em romper características superficiais que rotulam uma época, considerando todo o discurso de rebelião que permeia as obras constituintes. A exploração temática de questões como sexo, drogas e violência, elementos tão caros e indispensáveis ao universo exploitation, tem a sua explicitude no cinema negro bem para além de intenções fetichistas, atingindo pretensões de causar verdadeiro incômodo em quem assiste, usando como plano de fundo uma roupagem social/racial – porque a violência nesses filmes não está restrita a um sentido físico.
De qualquer maneira, é importante frisar que mesmo havendo trabalhos extremamente raivosos com praticamente todo o tipo de concepção clássica de cinema, como o clássico e inaugural Sweet Sweetback's Baadasssss Song (idem, 1971), o que veio a se tornar evidente no blaxploitation foi a ação de uma certa onda de filmes “antropofágicos”, aproveitando uma visão popular de gênero e narrativa para dar movimento às ideias que fervilhavam naquelas mentes. É então chegado o ponto-chave da questão: Truck Turner (idem, 1974), o filme específico deste texto, é um exemplar que se lança como uma espécie de faroeste urbano – a grosso modo, não muito diferente do que os italianos estavam fazendo na mesma época com os poliziotteschi. Ainda seguindo o raciocínio, logicamente que dentro de Truck Turner esses elementos são adaptados às características típicas e exclusivas daquela safra norte-americana.
Sim, é inegável o fato de que existem fortes marcas do espírito underground do estilo, mas também é importante pontuar que a obra em evidência exala certo refinamento incomum àquelas produções, o que termina por lhe garantir uma identidade particular dentro de seu nicho. O filme está recheado de gírias comuns (“nigga” e “bitch” são repetidas a formar lavagem cerebral no espectador), um recorrente artifício para uma materialização da representatividade linguística e também da rebelião que se encontra impregnada nas entrelinhas – e as entrelinhas são respiradas a cada segundo. Mas também espanta a forma como a coisa se apropria do dito “cinema branco”; as marcas do western spaguetti, por exemplo, são bastante fortes: temos dois caçadores de recompensa negros, o Morricone que é substituído pelo Soul do próprio Isaac Hayes (o homem que também dá vida ao nosso anti-herói), tiroteios em locais públicos etc.
Truck Turner ainda se faz valer de um rastro de vingança extremamente traiçoeiro - com uma finalização não pela conciliação entre a crueza e a delicadeza dos cenários áridos, mas sim pelas tensões de um ambiente tomado por carros, prédios, becos, etc. A cena do tiroteio no hospital, o clímax, é um momento de puro orgasmo; fascinante o turbilhão de emoções que vêm principalmente com aquele contra-plongée que acompanha o antagonista cambaleante, moribundo, enquanto o carrasco acompanha a passos lentos e observa todo o sofrimento ali presente, tudo num misto de ressentimento e prazer. E se existe uma coisa a se destacar entre os acertos desta obra-prima é o espírito orgânico que permeia a relação personagem/espectador; se acontece lá com eles, você certamente sentirá aí.
Caso solicitada uma palavra para definir brevemente a integridade de Truck Turner, “orgânico” pode ser a escolha a ser tomada. Aqui, o forte discurso extra-cinema encontra vida não apenas no contexto de produção de uma arte de rua e, sobretudo, para as ruas, mas também no ato de se vender como um filme de ação capaz de competir com os medalhões de sua época, obtendo um resultado final extremamente explosivo e empolgante. E é então que, mesmo com injustiças sofridas, temos um trabalho que sobrevive ao tempo – de uma maneira ou de outra. Curto e voraz, Truck Turner marca a sua presença como uma dose letal de adrenalina.
Excelente texto para esse clássico.
Thanx! Até onde sei é o único texto prum blaxploitation aqui, hã? rs